mil e uma pequenas histórias
425. A Cigarra e a Formiga
Uma formiga é igual a outra formiga qualquer, e um formigueiro igual a qualquer outro, não é pois de estranhar que existam tão poucas histórias com formigas, se é que há alguma, que valha a pena ouvir. Há muito que assim é e sempre será. Isto disse a Cigarra, ídolo de multidões, numa entrevista integrada na campanha promocional do seu último e sempre extraordinário CD, o que também não é de estranhar, verdade seja dita, uma vez que o desprezo pelas formigas é há muito a sua imagem de marca. [Há relações que nunca mudam, alteram-se apenas as posições relativas.]
424. O Crocodilo
Há muito que o Crocodilo quer aparecer numa história em que não venha à baila o tamanho da sua boca e a força das suas mandíbulas, a cupidez das suas lágrimas ou, o que é pior, o famigerado truque do pau . Mas a verdade é que deitar a boca a tudo o que mexe é o que ele mais gosta de fazer e faz sempre que pode, nada mais deixando para contar. Assim, ou muda de vida, ou espera por um milagre: que o seu nome deixe, de uma vez por todas, de ser sinónimo de dentada pela certa.
423. O Rato e o Leão
Num dia aziago, quando o Rato e o Leão mais uma vez jogavam às damas em sossego, eis que o primeiro comeu o segundo de uma só dentada, e nem a rápida intervenção dos serviços médicos serviu para alguma coisa. O Rato morreu de indigestão, e o Leão de paragem cardíaca, diz-se, embora não se tenha a certeza, pois a única que se tem é que está será a última história que deles se conta.
422. Dona Cegonha
Dona Cegonha nunca mais foi convidada para casa de ninguém e ressente-se muito disso. A verdade é que todos já estavam fartos que ela metesse o bico em todo o lado, pois Dona Cegonha, para além de parteira muito competente, é também uma mexeriqueira doentia. E assim, desta maneira, perdeu ela afinal o seu ganha-pão e o que mais gostava de fazer: bisbilhotar, bisbilhotar, bisbilhotar.
421. Mestre Mocho
Mestre Mocho há muito que deixou de filosofar, nunca mais abriu um livro e já ninguém procura os seus conselhos. Dizem as más-línguas que foi desgosto de amor, amor pelo conhecimento, que foi o único que ele alguma vez conheceu, e findo este assim também se foi o seu amor pela vida, que nele era uma e a mesma coisa. É de partir o coração vê-lo agora, sempre empoleirado no mesmo ramo, completamente aparvalhado, os olhos piscos e penetrantes agora vazios, e sem um pio que seja da antiga sabedoria. [Quem souber como ajudar Mestre Mocho é favor contactar rapidamente.]
420. A lebre
A lebre nunca mais perdeu para a tartaruga, comprou um Ferrari e anda sempre de prego ao fundo. Coisas dos novos tempos, em que nada já é como devia ser. [Mas por que é que a tartaruga não comprou um carro igual ou ainda mais veloz? – diz o leitor. Pois é, mas é que há coisas que nunca mudam, e a tartaruga continua a ter pernas curtas que não chegam aos pedais. E mesmo se assim não fosse ainda haveria a questão do dinheiro, pois a fábula dizia que a tartaruga ganhou a corrida mas nunca disse que ficou rica.]
419. Dona Raposa
Dona Raposa não caça há muito tempo, há quase tanto tempo quanto não come carne crua. Agora só come congelados aquecidos em instantes no micro-ondas. Diz quem a conhece bem que pouco ficou da Dona Raposa de outrora, a não ser o seu amor pela intriga e o seu desprezo pelas fábulas. [A moral desta história é paradoxal: tudo fica igual mesmo quando tudo muda.]
418. Zene
Faço mais e menos do que quero. Quero mais e menos do que faço. E assim dizendo isto a si mesmo ficou um certo homem a pensar o que fazia e o que queria. Não sabia ele que é afinal fazendo e querendo que se faz e que se quer.
417. A originalidade
Ser original não é difícil, basta apenas um pouco mais de trabalho. Difícil mesmo é mantermo-nos iguais a nós próprios. Isto ensinava um homem sábio que muito tinha mudado sem ter deixado alguma vez de ser quem era: um homem vulgar que nunca procurara ser sábio. E aqueles que o ouviam também achavam vulgar que ele fosse um homem sábio.
416. O zen
Era uma vez um homem que escreveu durante toda a sua longa vida com afinco e determinação redobrados, e desta forma aperfeiçoou a sua escrita muito para além do que alguma vez havia sido feito. Mas dizem que só quando estava já moribundo, é que julgou ter vislumbrado, para além das palavras tão finamente traçadas, um relance da verdade que sempre procurara sem nunca encontrar.
415. O maior dos milagres
Um sábio que há muito semeava flores admirava-se sempre quando elas surgiam, como se não fosse ele mesmo que tivesse deitado as sementes no solo e depois as regasse e desejasse com amor. Um aluno perguntou-lhe então um dia porque cargas de água se admirava ele perante o que ele mesmo fazia aparecer. O sábio perdeu a compostura e deu-lhe uma sonora palmada na nuca, ao mesmo tempo que lhe dizia: tem cuidado, que por esse andar ainda vais um dia negar que a vida é o maior dos milagres.
414. A vida, a arte e a verdade.
A arte é o melhor da vida, pensou um homem que pouco sabia da vida e nada da arte, mas a frase pareceu-lhe verdadeira, tão verdadeira como só as palavras conseguem parecer. E o homem sorriu, e o homem riu, e o homem não se cansava de repetir a frase que tanto se parecia com uma enorme verdade, tão simples e luminosa quanto a vida.
413. Basta um passo...
Onde fica a fronteira entre a sanidade e a insanidade mentais? Certa mulher reflectia nisso muitas vezes, e acreditava que bastava um simples passo para a demência, um passo sem retorno. Mas como poderia haver ida sem volta, realidade sem sonho, eu sem outro? Assim pensou, e quando assim o fez deu, sem quase dar por isso, um pequeno grande passo no caminho do ser.
412. O talento (para o pTd)
Talento é capacidade e vontade. Para ter talento precisa-se de alguma capacidade e de muita vontade de a ter. Isto ia pensando um homem enquanto conduzia na auto-estrada, e por isso logo ali criou uma metáfora fácil que o levou distraído ao seu destino. [O talento é como um carro, é preciso saber conduzi-lo e ter vontade de o seguir até onde nos quiser levar.]
411. A certeza (para a Maria João)
Aconteceu certo dia a uma mulher que todas as coisas que tinha como certas, de repente, foram postas em questão. Como é que era possível que, de um dia para o outro, o que era já não ser, e o que não era ter passado a ser com uma força inusitada? Sentia-se tão perdida que decidiu pôr um ponto final naquela história toda. Mas depois de muito tentar nada mais conseguiu do que acrescentar reticências. [Só a morte põe um ponto final à vida, disse ela si mesma, e pela primeira vez essa afirmação acalmou-a em vez de a inquietar.]
410. A vida/A morte
Esta é a história de um homem que não morreu. Esteve quase, é verdade, mas não morreu, foi por um triz, e muitas vezes assim aconteceria. Um pouco mais para a direita e teria morrido; não teria afinal ficado vivo para que se pudesse contar a história. E isto é muito importante, estarmos vivos quando podíamos estar mortos, pois assim somos sempre e antes de tudo o mais pessoas que não morreram. [Estar vivo é enganar a morte, assim pensou o homem que não morrera.]
409. A lentidão
Era uma vez um homem que aprendeu a viver lentamente… e ficou muito satisfeito com a sua descoberta.
Como dava beijos lentos, duravam-lhe mais os amores. Como dava passos lentos duravam-lhe mais os sapatos. Como imaginava com lentidão, duravam-lhe mais tempo os sonhos. Como vivia lentamente durava-lhe mais a vida. E, fosse como fosse, nunca mais se viu grego para viver, pois pouco a pouco até os problemas que antes o atormentavam lhe passavam à frente, tão lentamente ele os vivia, pois então… pois então…
408. O amor
Estava preocupado. Inquieto. Ansioso. Na verdade nem conseguia definir muito bem o que sentia. E isso, mais do que tudo, é que o deixava assim, sabia lá como! Preocupado. Inquieto. Ansioso. Mas também seguro de si. Tranquilo. Calmo. E foi neste singelo vaivém de emoções e de palavras que ele compreendeu finalmente que
o amor é tudo o que precisamos.
407. A verdade
Era uma vez um homem que encontrou a verdade e, para que não a perdesse ou a roubassem, escondeu-a muito bem escondida e deixou-a entregue a si mesma. Assim passaram muitos anos, e ele já mal se lembrava da verdade que um dia descobrira e tão bem mantivera afastada de si e dos outros. Resolveu então olhá-la de frente, mas quando o fez, nem soube o que dizer, pois se alguma vez ali estivera uma verdade há muito que deixara de o ser. "Agi mal", disse o homem, "devia-a ter partilhado", e foi esta sinceridade que na verdade o salvou.
406. O enlevo
Sentiu em si algo que não era novo mas que há muito já esquecera, e tudo fez para se encher desse sentimento. E de tal forma o fez, tão intensamente, que começou a inchar cada vez mais, sem nunca parar, ao ponto das pessoas que ali estavam começarem a correr assustadas em todas as direcções, na iminência da explosão. Mas quando a praça já mal continha o fenómeno, eis que se elevou sem esforço e desapareceu no céu com um enorme sorriso rasgado de satisfação. [Nunca é tarde de mais para se contar de novo uma história há muito esquecida.]
405. A alma
Certo homem vendeu um dia a sua alma, e pensou ter feito um bom negócio. Se todos vendem o corpo, disse a si mesmo, por que não vender a alma? É um negócio muito mais lucrativo! Até porque a alma não existe, concluiu. Curiosamente, foi nesse momento que sentiu a sua falta. E se tudo fez para reaver a sua alma, tudo foi também em vão: viveu até ao fim dos seus dias angustiado e infeliz. [A moral desta história é por demais previsível: Se venderes a alma não te esqueças de incluir uma cláusula que preveja um período experimental.]
404. A sabedoria
Era uma vez um homem que durante muito tempo procurou nos livros as respostas às perguntas que a vida lhe fazia. Mas a sabedoria que assim encontrou de pouco lhe serviu enquanto não percebeu que as únicas respostas certas são as que lemos em nós mesmos. Na verdade, foi só nesse momento que, apesar da sua já muita sabedoria, se tornou finalmente um homem sábio. [A moral desta história diz-nos que só devemos aceitar respostas a que possamos chamar nossas.]
403. A natureza do homem
É de minha natureza trair, disse o homem, mas uma coisa é certa, se não tivessem confiado em mim eu nunca os poderia ter traído. Cada um faz o que tem de fazer, e nada mais, mas esta verdade é dura de aceitar, pois se escolher é sempre difícil, ainda mais difícil é ser fiel a essas escolhas. Mas se traí, e sei que o fiz, disse ainda o homem, a verdade é que traí outros e nunca a mim mesmo. E tanto orgulho tinha nisso, que todos os que ali tinham vindo para o vaiar ficaram respeitosamente em silêncio.
402. O futuro
Não sei que futuro vou ter, mas sei que vou ter futuro. Isto disse um homem, tal e qual, e morreu quase de repente. Tivessem sido aquelas as suas últimas palavras e certamente a ironia da situação as teria imortalizado. Mas a verdade é que ainda teve tempo de dizer mais alguma coisa, e foram essas as palavras que todos repetiram e logo esqueceram. Ai que me estou a sentir mal!
401. A coragem (pegar a vida pelos cornos)
Os homens conhecem-se pela palavra e os bois pelos cornos, eis uma velha frase lida num livro, velha mas ainda cheia de significado, mesmo que os bois e as palavras já não tenham a importância de então, a não ser talvez para o forcado que espera o touro em silêncio: antes chamara-o, vaiara-o, agora só lhe resta rezar para que tudo corra pelo melhor, e que o touro receba sem ressentimentos o seu abraço caloroso. [A moral desta história é perigosa: O homem conhece-se pela palavra e define-se pelos actos.]
400. O coração (
história feita)
Foi a casa dela com o coração nas mãos, disposto a tudo esclarecer e perdoar. Ela recebeu-o à entrada com três pedras na mão. Ele abriu o seu coração, mas nada do que disse a fez mudar de opinião, e fechou-lhe a porta na cara. Ele ficou sem pinga de sangue, e o coração caiu-lhe aos pés. Mas há males que vêm por bem, pois foi só nesse momento que ele percebeu que o seu coração era de ouro, maciço. Vendeu-o por bom dinheiro, fez das tripas coração, e levou até ao fim da vida uma existência sóbria mas feliz.
399. O tédio
O escritor: falava sem parar. Os leitores: ouviam-no. Os livros: ora se fechavam ora se abriam, silenciosos, perplexos, ansiosos por serem lidos, e no entanto ignorados por aqueles que ali se tinham reunido por amor à leitura. Por muito tempo assim estiveram: escritor, leitores e livros. Mas a palestra durou ainda uma eternidade e os livros adormeceram a meio. Ninguém deu por nada, é verdade, estavam demasiado atarefados a falar de livros e de leituras.[A moral desta história é um importante cânone, apesar de muitas vezes negligenciado e esquecido: Os livros não têm outras expectativas ansiosas para além da leitura.]
398. A vontade
Era uma vez um homem igual a todos os homens: queria muitas vezes uma coisa e o seu oposto, queria e não queria, e a maior parte do tempo não sabia lá muito bem o queria. Resolveu então identificar com clareza tudo que queria, e depois de muito esforço e igual tempo finalmente conseguiu. O pior é que não ficou por aí, pois meteu-se-lhe na cabeça descobrir por que queria o que queria. A verdade é que não foi muito longe: nem sequer chegou a perceber por que queria afinal saber o porquê do que queria. Vontade não lhe faltou!
397. A vida e a morte
O dia chegou de repente, e o homem que ainda há pouco olhara a noite surpreendeu-se com a claridade nascente. Dia a dia atravessara a vida alheado do tempo, fosse qual fosse, fosse o que fosse, mas aquela súbita consciência de mais um dia perturbou-o profundamente. Não tinha os seus dias contados, evitara-o mesmo com todas as suas forças, o que era a sua forma ingénua de afirmar a vida e negar a morte, mas não pôde fugir-lhe assim como ninguém escapa a mais um dia. Morreu no exacto momento em que teve afinal a súbita certeza de estar vivo.
396. A verdade
Um romance que nos convença da sua verdade é verdadeiro. Tão verdadeiro como um sonho, vivido a dormir ou acordado. Isto pensava um escritor, e pensava-o com muita seriedade e compenetração, como é próprio dos escritores sérios e compenetrados, no fim de contas os verdadeiros escritores. Mas aos leitores pouco importa, pois não deve haver nenhum que não saiba que a literatura é a única utopia realizável. [A moral desta história é o que é mesmo que não o seja: Se é verdade que não é possível mudar o mundo, ainda é mais verdade que podemos sempre imaginá-lo mais verdadeiro.]
395. A felicidade
Ergueu a taça e olhou sem pressas a limpidez e a luminosidade do líquido. Depois, sem mais, agitou-a em círculos preguiçosos, e aspirou discretamente o aroma estremunhado. Finalmente bebeu um gole longo e exagerado que o deixou quase sem fôlego. E riu. Riu do momento, riu das palavras que apenas dizem a sua verdade, riu de si. Riu afinal porque estava vivo, e essa sensação era ao mesmo tempo doce e amarga, simples e complexa - era maravilhosa até na sua aparente banalidade. [A moral desta história é muito elegante: A felicidade é uma taça plena que se bebe aos poucos.]