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mil e uma pequenas histórias
30.8.02
 
12.

Não é verdade nem mentira que o dia esteja cinzento mas eu sei que está, ou talvez eu esteja. Sempre tive dificuldades em distinguir o interior do exterior, o côncavo do convexo, o dentro do fora, o eu dos outros. Este facto trouxe-me bastantes problemas ao longo da vida e vi-me forçado, inúmeras vezes, a explicar aos outros aquilo que, no geral, chamavam as minhas distracções e, nalguns casos, as minhas bizarrias. As coisas são o que são e disso nunca tive dúvidas, embora saiba perfeitamente que não é verdade nem mentira que o sejam. A realidade e a ficção são duas faces da mesma moeda, por assim dizer. Foi nisto que sempre acreditei e toda a gente que me conhece sabe que é assim. Quando anunciei que me apaixonara por uma personagem de ficção e íamos casar, todos foram unânimes em dizer que o casamento não fazia sentido: eu vivia no mundo da lua, nunca iria resultar.
 
29.8.02
 
11.

Desde o dia da sua morte que João não parecia o mesmo, sempre abatido, macambúzio, alheado da procura dos prazeres simples, sombra do bon vivant, divertido e folgazão, que todos apreciavam e procuravam, nos bons e nos maus momentos. Agora passava os dias deitado, deixara de procurar os amigos, já não se passeava inquieto pela zona baixa da cidade: abandonara afinal todos os seus hábitos. Comentava-se insistentemente o seu estranho e invulgar comportamento, mas ninguém se decidia a fazer coisa alguma. Por muitas voltas que dessem à questão, acabavam sempre por concluir que isso era lá com ele, ele é que sabia com que linhas é que se cosia. No entanto, sempre iam acrescentando que lá por estar morto não havia razão para tal mudança. Ao fim e ao cabo, não era a morte parte da vida? — perguntavam a modos de justificativa. No meio de todo este tumulto inconsequente, só o Manuel Professor teve o discernimento e a ligeireza para fazer o que era preciso: ir ao fundo da questão. Assim, decidido a esclarecer o assunto, foi junto dele e perguntou-lhe, sem papas na língua, que raio se passava que estava a deixar todos preocupados, ficando em silêncio à espera de resposta que não tardou, num balbucio rouco: ”Vou fazer tudo o que estiver ao meu alcance para continuar a ser o mesmo. Agradeço a vossa simpatia e preocupação, preciso só de um pouco mais de tempo, que a morte é uma coisa séria e de difícil habituação.” Umas duas semanas depois voltou tudo ao normal, o João retomou a sua antiga boa disposição e todos ficaram contentes, todos menos eu, que já lhe escrevera o obituário e tive de o guardar à espera de melhores dias.
 
28.8.02
 
10.

Um homem de 44 anos residente no Bairro do Pinhal, em Tavira, foi detido pela Brigada de Investigação das Actividades Anti-sociais por suspeita de crime contra a convivência e a paz sociais. A detenção foi efectuada com base numa denúncia, assinada por sessenta e três vizinhos e moradores do bairro, que afirmava viver o dito indivíduo praticamente fechado em casa e sem contacto com o exterior, excepto esporádicas idas ao mercado alternativo. Não recebia visitas nem falava com ninguém, mesmo quando interpelado. A busca ao seu domicílio revelou que não tinha televisão. Vários livros de poesia estavam espalhados pela casa, abertos, numa aparente desordem. O suspeito vivia ali há cerca de um ano, desconhecendo-se a sua anterior residência, amigos ou ocupação profissional.
 
27.8.02
 
9.

Avançou com confiança em direcção ao seus sonhos. Nem muito depressa nem muito devagar. Um avançar feito de avanços mas também de recuos e de pausas. Com confiança mas não sem dúvidas. Sempre mais além na direcção da linha do horizonte, onde os sonhos vivem, a confiança em si mesmo e nos sonhos alimentando um movimento perpétuo. Avançou, avança ainda e há-de avançar, sempre em direcção aos seus sonhos. Os sonhos, esses, estão-se nas tintas.
 
26.8.02
 
8.

Era uma vez uma história que estava à espera de ser contada. Era a história dez milhões oitocentos e setenta e sete mil trezentos e sessenta e cinco. Como a lista de espera era longa a história aborrecia-se. Fosse o aborrecimento de morte e nunca seria contada. Mas não foi o que aconteceu. A história esperou, esperou, esperou, e acabou por ser contada. Era uma história muito aborrecida, disseram os que a ouviram.
 
 
7.

Levantou-se e permaneceu sentado, fechou o livro e continuou a leitura. Desde que se levantara da cama, manhã cedo, tudo lhe saíra ao contrário, sem que conseguisse, no final do dia, encontrar uma única explicação para tudo o que acontecera. Levantou-se e de novo permaneceu sentado, voltou a fechar o livro e leu-o até ao fim. Durante algum tempo pensou em tudo o que fizera nos últimos anos, a vida tinha-lhe corrido bem, a sorte nunca lhe tinha faltado, a sublinhar, é certo, opções correctas. Levantou-se e mais uma vez permaneceu sentado, fechou o livro e foi deitar-se, convencido de que amanhã seria outro dia e talvez tudo voltasse ao normal, afinal só a morte não tinha remédio. Nada disso, nada mas mesmo nada disso, adormeceu e nunca mais acordou, saiu-lhe tudo ao contrário, menos a morte, que é astuta e maliciosa e não gosta de contradições.
 
 
6.

Perdeu-se de si mesmo na multidão que, em sinal de protesto contra o novo agravamento dos impostos, enchia a praça defronte ao palácio do governo. Durante horas vagueou entre os manifestantes à procura de si mesmo. Em desespero e sem saber mais o que fazer, dirigiu-se a um dos polícias presentes, a pedir ajuda, e foi imediatamente espancado e preso. Um ano depois foi colocado em liberdade. Os amigos dizem que nunca mais foi o mesmo.
 
23.8.02
 
5.

Anunciou aos jornalistas que já tinha o título e ia escrever um livro. Quando lhe perguntaram se não tinha medo que fosse apenas mais um livro, respondeu que já tinha o título e ia escrever um livro. Quando lhe perguntaram qual ia ser o tema do livro, respondeu que já tinha o título e ia escrever um livro. Quando lhe perguntaram a que público se dirigiria o livro, respondeu que já tinha o título e ia escrever um livro. Quando lhe perguntaram qual era o título do livro, constatou que já não se lembrava. Ficou muito perturbada, era um título maravilhoso, mas isso não a impediu de se lançar ao trabalho. Um ano depois tinha escolhido um novo título e anunciou aos jornalistas que já tinha o título e ia escrever um livro.
 
22.8.02
 
4.

Trabalhava numa oficina e sentia-se bastante angustiado. Tomou então a decisão de largar tudo e fazer uma longa viagem em busca de si mesmo. Por todos os lugares que passou perguntou por si, mas a resposta foi sempre a mesma: não sabemos quem é. Muitos anos depois, regressou ao ponto de partida, ainda sem saber quem era. A vizinha do 3.º B não teve dúvidas e saudou-o pelo nome. Sérgio sentiu um imediato e intenso alívio, a sua busca de si terminara mesmo.
 
21.8.02
 
3.

O fenómeno foi primeiro sentido pelos políticos, que não lhe deram grande importância: era apenas uma palavra, uma palavra gasta e envelhecida. Quando as organizações de ajuda deram o alerta, o fenómeno tinha já atingido o seu pico e o processo era irreversível. No fim do ano, a palavra já não existia. Ninguém a conseguia dizer ou escrever e já não era possível ouvi-la ou lê-la. Não figurava nos dicionários e nenhum livro a acolhia. Só a sua ideia perdurava ainda como uma sombra vadia, referida como aquilo que se sabe mas não se consegue expressar. Era curioso ouvir o silêncio perfeito que se produzia quando alguém ousava pronunciar a palavra, interrupção branca no discurso, tão branca quanto a sua ausência imaculada na mancha negra do texto. Quando já todos se tinham esquecido dela, eis que a palavra voltou, ocupando o lugar que deixara. Foi recebida com estranheza e hostilidade. Qual o seu real significado? Que falta fazia? Não existiam já palavras de sobra? O Governo reuniu de emergência e concluiu pela necessidade de realização de um referendo para decidir se a palavra deveria ser suprimida e proibido o seu uso futuro, oral ou escrito. No dia marcado, logo após a abertura das urnas, os primeiros votantes constataram que a palavra tinha desaparecido dos boletins, facto que levou à pronta anulação do acto e arrumou definitivamente o assunto.
 
20.8.02
 
2.

Na morte do velho filósofo os elogios fúnebres pareciam não ter fim. Dedicou toda a sua longa vida ao conhecimento de si mesmo – salientaram uns. Foi um homem sábio, possuidor de um conhecimento profundo – sublinharam outros. Abriu novos caminhos à filosofia humanista – afirmaram solenemente todos. Ninguém tinha dúvidas sobre ele, tinha sido um grande homem, o maior da sua geração, um exemplo para todos. Descerrada a lápide, coube ao morto a última palavra: “Fui não sei quem”, podia ler-se em letras dourados sobre o mármore negro, na estrita obediência da sua última vontade. A multidão dispersou, num silêncio embasbacado, e só duas horas depois o mais velho e mais sábio de todos eles conseguiu proferir em voz baixa: grande cabrão!
 
 
1.

Naquele dia, tal como tantos outros, saí do escritório por volta das sete horas. Era ainda de dia e estava calor. Desci até ao parque e sentei-me numa das esplanadas em redor do lago. Pedi um gin tónico e bebi-o em pequenos goles metódicos. Pedi outro, bebi-o da mesma forma e deixei que os meus pensamentos flutuassem sem controle. Foi só quando me levantei e me encaminhava para o carro, estacionado ali perto, que me apercebi que não sabia onde morava. E não se tratava de não conseguir dizer o nome da rua ou da porta e em que zona da cidade ficava mas sim, tão só e apenas, não ter a mínima recordação sobre o assunto. Em algum lugar havia de morar, mas onde? Sabia o meu nome, data de nascimento, filiação, estado civil, profissão - confirmei apressadamente o meu bilhete de identidade - mas não conseguia dizer a minha morada nem me lembrava de nada que me pudesse ajudar a descobri-la. Percorri os meus documentos mas nada encontrei. Estava a começar a perder o controle. Entrei no carro e arranquei sem destino confiando nos meus instintos. Mas apesar de conseguir visualizar facilmente a cidade, com as suas zonas e as suas saídas, sentia-me perdido. No cruzamento da rua 5 com a rua 12 despistei-me e fui embater num poste de iluminação. Desmaiei. Retomei consciência muito tempo depois, mais precisamente doze anos depois. Os médicos mostraram-se muito preocupados mas eu assegurei-lhes que me sentia bem. Uma semana depois deixaram-me sair. Entrei no táxi e dei a minha morada ao condutor. Finalmente ia voltar para casa.
 



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Luís Ene

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