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mil e uma pequenas histórias
30.4.04
 

528

Deitou-se para dormir e não acordou mais. E ainda hoje sonha uma morte feliz.
 
29.4.04
 

527 Brevidade

A Morte encontrou-o vivo. Por pouco tempo.
 
 

526

O conto mais curto tem sete palavras. [Tantas quantas foram precisas para o afirmar.]
 
28.4.04
 

Mil e Uma Pequenas Histórias

Chamei pequenas histórias a estes textos que tenho vindo a editar neste blog e que planeei continuar até que sejam de facto mil e uma.

Ainda que tenha já traçado a genealogia possível destas pequenas histórias e afirmado a sua natureza literária, a verdade é que o fiz de forma não sistematizada e despretensiosa. Por outro lado, constato que os visitantes que se afirmaram tocados por elas são, na esmagadora maioria, brasileiros, facto para o qual nunca vislumbrei uma explicação.

Descubro agora que o “microrrelato”, embora seja conhecido de todas as literaturas contemporâneas, parece ter irrompido com maior força do lado de lá do Atlântico, pela mão da ficção hispano-americana. Descubro também agora o que já adivinhara mas nunca lera, que o “microrrelato” se apresenta como uma autêntica proposta literária, em que o conto “ultracurto” — cuja extensão não ultrapassa as 200 palavras — ocupa uma posição especial.

Assim, de repente, deixei de me sentir só nesta empresa, e estes quase dois anos a escrever pequenas histórias neste blog ganharam um sentido mais profundo.

PS. Convido à leitura dos textos acima hiperligados ( e este também) e aceito comentários e sugestões. :-)

 
 

525

Dizer muito em poucas palavras não é a mesma coisa que usar poucas palavras para dizer muito. Existem diferenças, pequenas, subtis, mas ainda diferenças. Pudesse eu explicá-lo aqui, em menos de cem palavras, e seria sem dúvida o campeão da brevidade. Mas ainda te digo, leitor, afastada essa pretensão, que enquanto no primeiro caso há um claro propósito de concentração, no segundo é o desejo de expansão que tudo determina.
 
27.4.04
 

524 [pequena história para telemóvel – 159 caracteres (incluindo espaços)]

Perdido o amor da sua vida, ficou perdido o homem, sem apelo nem agravo, perdido de si e do seu amor. A partir daí viveu perdidamente até ao fim dos seus dias.
 
26.4.04
 

523 Muito bem!

Foram todos convidados para o jantar anual, sempre os mesmos, como acontecia desde o primeiro ano em que se realizara, há mais de quarenta anos anos, mas a verdade é que nem todos compareceram, muito poucos até, o que acontecia cada vez mais a cada ano que passava. Como destacou um dos oradores, a terminar, não está presente só quem quer mas também quem pode, afirmação que arrancou muitas palmas e prolongados apoiados. [A moral desta história podia ser: A melhor maneira de nos sentirmos vivos é desafiar a morte.]
 
23.4.04
 

522

Um homem disse a si mesmo: — Quero contar histórias às pessoas.

E acrescentou: — Histórias que sejam simples, directas e secas no estilo.

E concluiu: — Que sejam ao mesmo tempo divertidas e profundas de um modo subtil.

Repetiu todas estas coisas a si próprio, vezes sem conta, com convicção e empenho, mas muito tempo teve de passar até que as aceitasse verdadeiramente.

São coisas que acontecem, e não há nada a fazer a não ser continuar.

 
22.4.04
 

Quem escreve está a utilizar a palavra para chegar ao que as palavras não conseguem dizer, ao indizível. Como nunca lá chegamos, continuamos a escrever.

Richard Zenith

Compare-se com a pequena história 518.
 
 

521

Levantou-se, tomou banho, vestiu-se, saiu de casa, tomou o pequeno-almoço no café da esquina, chegou ao emprego e encontrou a porta fechada.

Olhou sem expressão a placa que anunciava o horário de funcionamento: De Segunda a Sexta das 09:00 às 17:00 horas.

Entrou em casa, despiu-se, deitou-se na cama e adormeceu de imediato, até ao meio-dia, que era o que fazia todos os sábados.

Quando acordou, estremunhado, levantou-se, tomou banho, vestiu-se, saiu de casa e foi almoçar no restaurante do costume. O prato do dia era o mesmo de sempre.

 
20.4.04
 

520

O grande desejo daquele escritor era ser um dia capaz de escrever o silêncio. Pelo menos foi o que me disse, e eu acreditei nas suas palavras. Mas a verdade é que não percebi lá muito bem onde ele queria chegar. Mais tarde, quando regressava a casa, escrevi quase à pressa estas palavras: Silêncio, silêncio demorado. E ia jurar que escutei esse silêncio escrito, mas depois pus-me a pensar e fiquei de novo com dúvidas.

 
19.4.04
 

519 Que Evolução?

No ano de 1974, no vigésimo quinto dia do mês que antecedeu Maio, aconteceu neste país uma fantástica sublevação que enlouqueceu os seus habitantes e espantou todo o mundo. Disso não tenham dúvidas! Passe o tempo e mais tempo passe, sumam consoantes e vogais, esvaneça-se afinal todo o alfabeto, mas tenha voz quem então esteja vivo e um simples uivo pode evocá-lo. Há coisas que nunca se esquecem. O vinte e cinco é uma dessas coisas. [Caro leitor, comprove, ou fique-se com a minha palavra: é muito, muito mais fácil escrever sem erres do que esquecer a revolução de Abril!]


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18.4.04
 

518. Escrever e acreditar

Acreditava que o mais importante era escrever, e escrevia, quase sem parar, de manhã à noite, fascinado, não pelas palavras, mas pelo que estava para além delas e que só elas lhe permitiam avistar, como se as palavras fossem óculos, binóculos, que lhe levassem mais além o olhar, muitas vezes apenas até outras palavras, mas outras, poucas, para além delas, em breves vislumbres de tudo e de nada. No entanto, a maior parte das vezes as palavras eram apenas palavras, e nada desvendavam, mas ele continuava a escrever. Daqui se pode concluir com facilidade que o mais importante é acreditar.

 
16.4.04
 

517

Existe uma certa volúpia no aborrecimento, doce angústia que nos paralisa e devora pouco a pouco sem nunca acabar. São dias e dias em que nada se faz a não ser pensar no nada que não se faz, numa imobilidade trágica mas ainda satisfeita de quem afasta a morte a ela se entregando às prestações. Assim viveu este homem que aqui se evoca, um homem que nada fez a não ser comprazer-se no seu nada fazer. Dizia-se decadente, dizia-se sábio, mas talvez fosse apenas muito preguiçoso e um tudo-nada lerdo. A sua vida é certamente um exemplo a (não) seguir.


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15.4.04
 

516

Era uma vez um homem de quem todos diziam, sem qualquer hesitação e a todo o instante, parecer um artista. A verdade é que ele não o era, nem se sentia de alguma forma guardado para tal destino. No entanto, com o tempo, acabou afinal por se convencer de que era o que parecia, e tornou-se então um verdadeiro artista, ou, o que é a mesma coisa, passou a acreditar que o era. Talvez por isso seja costume dizer que aquilo que cada um é ou não é, depende muito mais do parecer do que do ser ou não ser.

 
 
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515

A vida é um palíndromo, disse o homem, muito contente por mostrar a sua sabedoria, e muito menos interessado em comunicar a sua ideia. Afinal o que ele queria dizer com isso, e o leitor atento de certeza percebeu, é que a vida pode ser vista e contada do nascimento para a morte ou da morte para o nascimento. Na verdade, agora que penso melhor nisso, faz pouco sentido contar a vida de alguém que ainda não morreu, o que me leva a concluir que talvez não seja de todo ridículo afirmar que apenas há verdadeira vida depois da morte.
 
14.4.04
 

514

A Morte encontrou-o sentado na cama, a ler com afinco um grosso livro, e tão compenetrado o viu que não quis de forma alguma interrompê-lo. Regressou noutra ocasião, mas ele lia ainda, como se não tivesse mais nada para fazer, e de novo ela se foi embora sem hesitações. O mesmo aconteceu ainda outras vezes, mas é claro que o homem morreu afinal um dia, como não podia deixar de ser, só que isso foi muito mais tarde. A moral desta pequena e despretensiosa história não destoa: A leitura não afasta a morte, mas ajuda bastante a prolongar a vida.


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13.4.04
 

511

Dois escritores, um bom e outro mau, foram inseparáveis em vida, e nunca se conseguiu afinal descobrir qual era um e qual era outro. Como não podia deixar de ser, ambos escreviam, ou não seriam escritores, mas quanto à respectiva qualidade literária as opiniões dividiam-se e contradiziam-se. E o mesmo se diga das vendas, pois embora um deles vendesse muito mais do que o outro, desse facto ninguém conseguiu alguma vez extrair uma conclusão definitiva. A dúvida subsistiu mesmo depois de mortos, e a única certeza que hoje se tem é que ambos eram escritores, um bom e outro mau.


512

Era uma vez um homem que se interrogava muitas vezes se seria afinal um escritor, e nunca nem uma vez lhe passou pela cabeça que tal era tempo perdido, pois ou bem que se é ou não se é, e pensar sobre isso de pouco adianta. Talvez o caminho mais fácil seja acreditar-se que se é, porque é sempre a nós que cabe a última palavra, sobretudo quando se é escritor. Se queres ser escritor, disse o homem a si mesmo, escreve, é a única certeza que alguma vez podes ter. E foi o que fez. A sua obra prova-o.


513

Era uma vez um homem que se interrogava muitas vezes se seria fácil ou difícil nadar, e assim pensando ia adiando afinal a sua primeira vez. Aconteceu no entanto que passeando certa vez ao longo do rio, depois do almoço, bem comido e melhor bebido, tropeçou e caiu à água sem apelo nem agravo. Quando o retiraram do rio, dois quilómetros mais à frente, já estava morto. Ainda deu umas braçadas, disse quem assistiu, mas de nada lhe serviram, pois morreu afinal de congestão, que a morte não é esquisita e de certeza não pensa duas vezes antes de agir.


 
 

510

O seu primeiro livro foi um enorme sucesso de vendas e de crítica, o que o assustou de tal forma que nunca mais conseguiu escrever. Mas a verdade é que essa circunstância contribuiu ainda mais para o seu sucesso, e até ao fim da sua vida viu os seus leitores e a sua fama crescerem sem parar. O suicídio também fez a sua parte neste fenómeno, mas isso foi mais tarde, um nada mais tarde.


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12.4.04
 

509

Nunca jamais em tempo algum sentiu que uma maior compreensão dos outros o ajudasse a melhor se relacionar com eles, e a verdade é que cada vez mais se tornou o centro à volta do qual todos gravitavam. E com isto não quer dizer que ignorasse os outros ou que apenas se preocupasse com ele próprio, nada disso, mantinha-se tão-somente a uma prudente e calculada distância deles. Mas o que ele vivia como uma profunda sabedoria era entendido por eles como uma mera esquisitice. Ele sabia disso mas não lhe dava qualquer importância. Era a opinião deles, não a sua.


planetas_con_nebulosa.jpg


 
10.4.04
 

508

Somos o que somos. E somos também o que fomos. Por isso não importa tanto o que fomos mas o que somos, pois seremos sempre o que somos e o que fomos. A diferença entre o que somos e o que fomos é muito menor que uma letra. A diferença é na verdade insignificante. Somos o que somos e o que fomos, e ainda o que seremos. Somos afinal aquilo que somos, nada mais. [Repetir até (deixar de) fazer sentido.]
 
8.4.04
 

507

Um homem e uma mulher encontraram-se e logo se apaixonaram perdidamente, o que até seria quase vulgar, não fossem as circunstâncias adversas que fizeram com que esse amor ainda mal começara e já fosse. Acontece que a mulher vivia no presente, cada dia de uma vez, como se fosse o último. Por outro lado, o homem vivia no futuro, cada dia era para ele o primeiro de todos os que se seguiriam. E foi desta maneira que ainda mal se haviam apaixonado e já o amor era passado. A moral desta história a seu tempo chegará. É só ter paciência!


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7.4.04
 

506

Este homem de que falo chegou a estar mais de cinco anos sem sair de casa, de tal forma que os vizinhos o esqueceram ou o julgaram morto. Durante esse período não fez mais nada a não ser escrever, como se tornara nele habitual, mas nunca alguém o leu ou lerá. Era um escritor, que disso não se tenha a menor dúvida, mas um escritor menor, talvez até medíocre, e disso tinha perfeita consciência. Escrevia porque não conseguia deixar de escrever, mas nunca fez o menor esforço para ser lido, e foi assim que nunca deixou de ser quem era.


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505

Uma rapariga tem sempre de ter algo a que entregar o seu coração, e a rapariga que chamo a estas linhas é nisso igual às outras. O que lhe aconteceu e a torna diferente é que amou perdidamente, e até tal ponto o fez que perdeu o coração e não mais o encontrou. Na verdade ainda hoje o procura, e não vê a hora de o reaver e poder amar de novo. É que uma rapariga sem coração é sempre, mas sempre, um caso perdido.


coracao.jpg


 
6.4.04
 

504

Conhecia o caminho de ida e o caminho de volta e várias vezes os tinha percorrido. Sabia também que o caminhante faz o caminho. Por isso não se admirou quando o caminho de ida o trouxe de volta e o caminho de volta o levou a partir de novo. Era um homem sábio e experimentado e não ignorava que o destino não se encontra no fim do caminho mas em cada curva do nosso ser.



 
 

503

Entrou em casa e encontrou-se na rua, em frente à porta, de costas para ela. Voltou-se, entrou de novo, e de novo estava cá fora, num movimento suave e contínuo que não lhe causou qualquer perturbação. E várias vezes repetiu a acção, sempre com o mesmo resultado, até que o leitor, que desde o início o seguira sem a mínima hesitação, acabou por se cansar e fechar finalmente o livro.


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5.4.04
 

502

Lembro um homem feliz, afortunado, que nunca precisou de condições especiais na vida, pois sempre lhe foi suficiente estar vivo, e nada mais, para viver com intensidade a vida. Muitos dizem que tal se devia ao sentido de propósito que era nele mais que evidente, mas isso não sei nem comento, agora que a sua vida fazia sentido, de propósito ou não, essa é uma verdade indiscutível. É afinal o que acontece a todos os que acreditam em si mesmos.

 
 

501

Lembro um homem que muitas vezes pensava em mudar, e com tanto empenho o fazia que pouco tempo lhe restava para mais alguma coisa. Não é pois de estranhar que tenha permanecido sempre o mesmo, o que até seria de louvar não fosse ele continuar a desejar ser outro, o que afinal o impedia de ser ele próprio. É afinal o que acontece a todos os que não se mantêm livres para serem eles mesmos.

 
1.4.04
 

QUINHENTAS (500) E UMA PEQUENAS HISTÓRIAS

Quinhentas pequenas histórias são quinhentas pequenas histórias, já aqui tinha dito, mas agora são quinhentas pequenas histórias escritas por mim, e mais uma, a história que todas juntas contam. Acho que tenho direito a um descanso! :-)
 
 
jasminum_officinale.jpg
 
 

500. Confusão

Era uma vez um homem que toda a sua vida estabelecera um difícil relacionamento com os outros, o que nunca lhe foi fácil de aceitar, mas esse estado de coisas tornou-se insuportável quando passou a incluir os outros que existiam em si mesmo e a quem sempre chamara eu. Como tudo tem um fim, ainda que seja um recomeço, esta história vai terminar quando parecia que ainda mal começara, não sem que se diga que o homem acabou por ficar bem não só com ele próprio mas também com os outros, pois percebeu que os outros eram afinal ele mesmo.
 



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