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mil e uma pequenas histórias
30.4.03
 
216. Citações

Era uma vez um homem que gostava de citações e utilizava com frequência as que lhe agradavam. Costumava dividi-las em excitações e recitações, as que o estimulavam e as que o sossegavam, e usava-as em conformidade. Gostava tanto de citações que, com o correr do tempo, passou apenas a comunicar dessa forma, citando os outros e a si mesmo. [A moral desta história é, e estou a citá-lo, não tentes dizer agora o que antes já foi dito muito melhor.]
 
29.4.03
 
215. Um problema (ao Erich)

Repetiu mais uma vez a si mesmo que o importante era amar. Ser amado não é importante, o importante é amar, é ser capaz de amar, disse ele. Mas sabia-se fraco, muito fraco, e para amar é preciso ser forte, muito forte, sobretudo quando se ama e não se é amado. [A moral desta história é a seguinte. O problema do amor é o problema de uma faculdade e não o problema de um objecto. Resumindo: o amor é um problema, resolva-o quem for capaz!]
 
28.4.03
 
214. Ficção (ao Moacyr Scliar)

A ficção é uma coisa sem controlo. É como mentir. Começa-se, sim, começa-se, e sabe-se lá onde se vai parar. Onde e quando! Mentimos tanto que até mentimos a nós mesmos. Foi o que aconteceu a um homem que levava a escrita demasiado a sério. Disse a si mesmo que era escritor, mas mentia, ele era muito mais do que isso, era um homem, um homem que mentia, aos outros e até a si mesmo, mas, uma coisa é certa, fazia da mentira a sua verdade. [E a pergunta de hoje é: onde começa a ficção e termina a realidade?]
 
27.4.03
 
213. Isso é um livro? (ao Jorge Silva Melo)

Entrou numa livraria e pediu o nariz de Gogol. A empregada tentou vender-lhe a mãe de Gorki. Ficou muito perturbado, e exigiu-lhe em alternativa as três irmãs de Tchekhov. Mas ela só conhecia a mãe de Gorki e nunca tinha privado com as três irmãs de Tchekhov ou sequer entrevisto o nariz de Gogol. Ele falou-lhe então longamente da riqueza da literatura russa, e ela escutou-o com atenção. Estão muito apaixonados e vão casar-se. A mãe de Gorki foi convidada. Ela insistiu, e ele não foi capaz de lhe dizer que não, mas é óbvio que preferia de longe convidar a Ana Karenina. [E não se esqueçam, nada disto teria acontecido se ela tivesse apenas respondido: Isso é um livro?]
 
25.4.03
 
212. Fama

Também ele teve os seus quinze minutos de fama: foi o tempo que demorou o seu funeral. [A moral desta história é: todos seremos famosos um dia, vivos ou mortos]
 
24.4.03
 
211. Igual a si mesmo

Tinha as suas próprias ideias e emoções, e em nada o perturbava que fossem idênticas às do grupo. Sentia-se um indivíduo, e era tanto mais feliz com a sua condição de ser único quanto menos se distinguia dos outros. Suicidou-se um dia, e com ele os restantes quarenta e cinco homens e mulheres que formavam a seita a que pertencia. Foi igual a si mesmo, pode sem dúvida dizer-se, tanto na vida como na morte.
 
 
210. A primeira vez

Tinha alcançado uma perfeita consciência de si mesmo, e esse sentimento intenso e persistente era-lhe agradável, mas, ao mesmo tempo, incomodava-o, como se trouxesse vestida uma camisola de um tamanho inferior ao seu. Um dia apaixonou-se e experimentou de súbito o milagre da unidade: perdeu então a consciência de si mesmo e sentiu-se finalmente um só. Estranho caminho é este que nos leva de nós aos outros e dos outros a nós mesmos, pensou o homem, e foi nesse preciso momento que se sentiu completamente miserável* pela primeira vez. [* onde se lê miserável sintam-se à vontade para ler feliz]
 
22.4.03
 
AOS QUE CONTINUARAM ATÉ AQUI

Cento e oitenta e duas pequenas histórias depois senti a necessidade de falar sobre elas e contar a sua história e a deste blog. Dizia então, quase a terminar, que gostava de ver aqui mil e uma histórias e até ponderei se não seria boa ideia abrir este blog apelando à participação de todos para que esse desejo se tornasse realidade.

Pois é, continuei a colocar aqui pequenas histórias escritas por mim, e passei a linkar outras que de alguma forma me foram oferecidas ou dedicadas. E aproveito para agradecer aos que me pediram para continuar e a todos aqueles que me ofereceram mais uma história. Quanto às pequenas histórias, passei a dar-lhes títulos, a incluir dedicatórias, a publogar algumas delas em simultâneo aqui e no Mil mais uma… mas, sobretudo, deixei de as contar, e julgo que é importante voltar a fazê-lo se quero manter o projecto inicial. Só dessa forma será possível saber não só se foram alcançadas as 1000 e uma, mas também a quantas andamos!

Tenho algumas dúvidas, muitas, sobre a obsessão de contagem que muitas vezes assalta os que escrevem e lêem, e que nos leva a perguntar quantas páginas tem um livro, quantas palavras tem um conto e, ainda por cima, daí tirar conclusões supostamente importantes e acertadas, mas, neste caso, a contagem insere-se na própria natureza do blog e é a sua própria razão de ser. Por isso, toca a contar as histórias, e vou contar todas, as que escrevi e as que me foram oferecidas e aqui linkei.

E as pequenas histórias são, de acordo com a última contagem, 182 mais 23 mais 4…

São 209 pequenas histórias. Faltam 792. Na verdade falta apenas afixar mais uma, e mais uma… até que sejam 1001.
 
 
mais uma, sim, mais uma (do Avery)

aqui
 
 
Chuva terapêutica (escrita a pedido...)

Gosta de tomar banho de chuveiro. E não pensem que esta minha afirmação quer dizer que gosta de poupar tempo ou água. Não, não é nada disso, apesar de ser verdade que tem uma vida ocupada e algumas preocupações ecológicas. Gosta de tomar duche porque nada lhe dá uma tamanha sensação de plenitude. Está mesmo convencida que é uma das coisas melhores que há na vida. Quando era pequena gostava de andar e dançar à chuva, mas a água era quase sempre fria, e a intensidade da sua queda imprevisível: tanto podia ser leve e passageira ou forte e persistente. E depois, confessa, adorava sentir a água na sua pele nua. E não era fácil iludir a vigilância dos pais, nem afastar a vergonha. Entretanto cresceu, e continua a gostar de andar e dançar à chuva, continua a gostar de sentir a água intensa e cálida sobre o seu ser despido. Vive sozinha. Trabalha. É independente. Mas não sai para a rua debaixo de uma chuva qualquer. E muito menos nua. Sim, porque se ainda não tinham percebido, o chuveiro é o lugar onde ela é ela mesma, completamente liberta do fardo do esforço de ser, totalmente calma e confiante nos braços ingénuos do puro prazer. [E a moral desta história só pode ser uma: nunca escrevas sobre chuveiros quando podes ir tomar um duche.]
 
20.4.03
 
Esquisitices

Era uma vez um homem que insistia sempre que o vinho lhe fosse servido em copos bojudos. As pessoas achavam-no muito esquisito. Um dia, assistiu a uma demonstração, dada por um israelita, que provava serem abissais as diferenças no vinho, quer nos aromas quer no paladar, consoante o formato do copo. Ficou tão contente que o abraçou e beijou efusivamente. Estão juntos há dez anos e são muito felizes. As pessoas acham-nos muito, muito esquisitos.
 
19.4.03
 
Querer ser!

Estava sentado, nada fazendo, e isso era tudo o que ele era, mas mesmo assim ainda sentia uma enorme necessidade de ser. Pobre coitado, era, apenas, e no entanto queria tanto ser. Há vícios que nunca se perdem, e querer ser é sem dúvida o mais forte de todos, por mais vivo que se esteja.
 
18.4.03
 
Ser

Muitas vezes pensava como poderia encontrar o seu ser, e tal tarefa parecia-lhe desejável e possível, ainda que extremamente árdua e exigente. Mas eis que alguém lhe falou da procura, não apenas do ser, mas do verdadeiro ser. Ufa! Ufa! Isso foi de mais para ele. Que bom que existia gelado de pistácio, verdadeiro gelado, saboroso, fresco, delicioso. Sentou-se numa esplanada a olhar o rio e a comer um copo de gelado. Sentiu então que o seu verdadeiro ser se revelava, e saboreou a vida em comunhão com o universo.
 
16.4.03
 
Mais uma, sim, mais uma (da Sue)

aqui
 
14.4.03
 
Lembram-se dele?

Completou há poucos dias setenta e um anos, e vive feliz em Palm Springs, numa pequena moradia com um enorme jardim arborizado virado para o mar, onde passa os dias a pintar, a tocar piano, a folhear revistas e a rever-se nos seus velhos filmes. Tem pensado muito em escrever as suas memórias, mas hesita ainda, o que é pena. É um ser de eleição e a sua vida daria um excelente livro. O seu nome é Cheeta. Lembram-se dele?
 
11.4.03
 
Mais uma vez (a todos os que escrevem...)

Todas as histórias têm um corpo e um espírito, uma forma e um conteúdo. As palavras são o corpo onde o espírito vive, isto quer sejam ditas, escritas, tecladas ou impressas. A forma do corpo é a forma do espírito, e desta maneira a forma e o conteúdo fundem-se, confundem-se e transfiguram-se. O corpo veste-se e reveste-se ainda, ora revelando ora ocultando o espírito. Assim, não só o corpo se transforma, em si mesmo, mas também na sua aparente aparência. [Esta história foi escrita num pequeno guardanapo de papel, quadrado, fino, rugoso, e não renega a sua origem, antes se orgulha dela, e talvez seja só isto que ela tem para dizer, antes de terminar.]
 
7.4.03
 
Um método fácil para escrever (aos que me lêem...)

Experimente começar com... cinco palavras. E depois diga a si mesmo: o dobro ou nada. É aqui que se fará a diferença, ouça o seu coração e deixe-se ir, nada é mais fácil, vai ver. O mais difícil vem a seguir, mas você já vai lançado, o medo está vencido e a imaginação a crescer, tudo o que vier à rede é peixe, mais tarde será visto e escolhido, assado ou frito, cozido ou grelhado. Pode usar outras fórmulas. O dobro ou nada é apenas uma delas. Experimente dizer, por exemplo, venham mais cinco, quatro, ou apenas mais uma, palavras, páginas, sei lá... Escrever é jogar, é como a vida, tem regras de mais, tem muita diversão e dor, e é preciso arriscar sempre a todo o momento, pois é, os dados estão lançados, eureka! [Seja qual for o método, não se esqueça, qualquer operação com nada é sempre nada.]
 
 
Ser um herói (a todos nós)

Estava sentado, a teclar, quando o computador pifou. Soube de imediato o que tinha de fazer. Nem o mau tempo, nem o trânsito, nem a distância a percorrer o detiveram. Mas quando chegou a casa do amigo bateu com a cara na porta. Ficou desanimado. Lembrou-se então que a vizinha do segundo andar tinha uma chave e nunca saía. Estava finalmente ao computador, mas não se sentia satisfeito. Levantou-se, foi até à estante, tirou um livro qualquer e leu ao acaso. [Diz-se que é herói aquele que pratica feitos heróicos, sem igual, que o tornam excepcional, mas haverá maior heroísmo do que viver a vida comum de todos os dias?]
 
 
Uma adivinha (a todos que se interrogam)

Escreveu um romance que subiu a número um de vendas mundiais em poucos dias. Matou milhares de pessoas, e tudo, tudo fez para se manter no poder. Escreveu ou mandou escrever? Matou ou mandou matar? Um homem é aquilo que faz? Perguntas! Perguntas! Perguntas! Qual é a coisa, qual é ela, que nunca se esgota nela? Vá, adivinhem. Têm uma vida inteira até a morte chegar! Desistir não é opção.
 
3.4.03
 
O contador de histórias [ao Paul Auster]

Um certo dia sentiu pela primeira vez a necessidade compulsiva de contar histórias. Disse a si mesmo que não, e tudo fez para ignorar as histórias que lhe falavam cada vez mais alto. Mas era impossível não as escutar, tal era o barulho que faziam. Distingui-las umas das outras, para que pudessem ser contadas, parecia-lhe uma tarefa árdua e aborrecida. Mas sentia-se muito mal, cada vez pior, e decidiu-se finalmente, na esperança de cortar o mal pela raiz. Estava muito, muito enganado: por mais histórias que contasse o falatório não desaparecia. Quando lhe perguntavam porque não desistia, a sua resposta era sempre igual: Não é que me dê grande prazer, mas não contar é pior.

A morte de um leitor [ao Borges]

Era uma vez um leitor que começou, de um dia para o outro e sem qualquer explicação, a ter fortes ataques de sisudez e aborrecimento. Passado pouco tempo era já incapaz de rir e de apreciar os simples prazeres da leitura. Desesperado, foi consultar um especialista altamente recomendado por um amigo. O perito ouviu-o com atenção e simpatia, nunca o interrompendo, fez-lhe duas ou três perguntas e, no final, recomendou-lhe a leitura intensiva e exclusiva do D. Quixote por um período não inferior a seis meses. Foi mais um sábio conselho que chegou tarde. O leitor morreu ali mesmo, no interior da biblioteca, nem teve tempo de requisitar o livro.
 
1.4.03
 
Uma história muito reticente (ao Carlos)

Era um excelente dia...gnóstico, claro e perfeito, e ele teve a certeza que em breve morreria. GRITAR A...DEUS ESTÁ FORA DE QUESTÃO, pensou o homem que acreditava tudo saber. E se assim o pensou, melhor o disse, a si mesmo. Mal...dito, mal...dito, mal...dito. [A moral desta história é tão reticente quanto ela. A força das palavras é a sua fraqueza.]
 



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... a ficção no seu mínimo...

Luís Ene

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