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mil e uma pequenas histórias
31.7.04
 

623

Estava muito infeliz, e só esse sentimento existia para si. Recordou então os dias em que fora feliz e, por momentos, voltou a sê-lo. Depois, numa súbita inspiração, antecipou os dias em que seria feliz, e assim continuou para sempre.

 
30.7.04
 

622

Alguns chegaram mesmo a afirmar que ele era um escritor que desprezava as palavras, ou que, por causa disso, nem o chegava a ser, o que ele negava com um sorriso leve, dizendo que apenas as amava como elas eram, e nada mais.

Poderá por isso ser apontado a dedo?

 
29.7.04
 

621

Chegou à hora marcada, sentou-se, fechou os olhos, e durante vinte minutos esteve imóvel como se dormisse. Finalmente abriu os olhos, de novo os fechou, e momentos depois levantou-se sem pressas e saiu.

Tudo isto teria até parecido muito estranho se todos os presentes não tivessem feito exactamente o mesmo.
 
28.7.04
 

620

Quando saiu de casa não sabia que nunca mais ia ali voltar. Tal coisa nem de longe nem de perto lhe passou pela cabeça. Mas foi assim mesmo que aconteceu. Nunca mais ali voltou.

E se estavam a pensar que eu ia contar mais alguma coisa, tirem daí a ideia.
 
27.7.04
 

619

Um homem decidiu escrever uma pequena história todos os dias, e já o fazia há tanto tempo, que era quase como comer ou dormir. Mas a verdade é que às vezes não tinha fome, e outras não tinha sono. Da mesma forma também nem sempre escrevia uma história, mas quase…


 
26.7.04
 

618 (100 palavras)


Falou quando tudo lhe aconselhava a estar calado, e mais uma vez se arrependeu. Ele bem sabia que a maior parte das vezes as palavras falam por si mesmas, e palavra puxa palavra sabe-se lá o que podem dizer quando começam a falar. E assim foi. Mais uma vez. “As palavras devem ser usadas com muito cuidado e extrema parcimónia”, disse ele a si mesmo, antes de se calar. Mas já era tarde, e o que fora dito estava dito. E toda a gente sabe que é infinitamente mais fácil explicar o que calámos do que esclarecer o que dissemos.


 
25.7.04
 

616

Tem de haver uma explicação, disse.
Tem de haver uma explicação, insistiu.
Mas não havia. Na verdade, ainda existem coisas que não têm uma explicação por mais que sejam explicadas.

617

(<160 caracteres)
O amor é cego, o que faz que todos os outros sentidos sejam usados no seu máximo. E isto é o mínimo que faz.

 
 

615

Escreveu uma história muito, muito pequena, e sentiu-se muito, muito feliz. A história apontava directamente para fora de si mesma e parecia não ter fim, como uma pequena pedra que tivesse atirado a um lago calmo e profundo. Leu-a uma vez mais e mais uma vez sorriu de completa felicidade.

 
23.7.04
 

614

Todas as histórias têm um princípio e um fim, e estendem-se nos próprios limites que criam. Concordam? Ou talvez exista apenas uma história sem princípio nem fim que contém todas as histórias. Que acham disto? Ou uma coisa ou outra, ou se calhar nenhuma delas, sabe-se lá, que este é afinal o poder e o mistério da narrativa, quando se começa nunca se sabe onde se acaba... Onde é que íamos? Ah, sim... Começa-se a contar uma história pelo princípio e acaba-se... acaba-se no fim.
 
22.7.04
 

613

As palavras dizem o que podem dizer e apontam para o que não pode ser dito. Isto disse um homem, primeiro a si mesmo e depois a quem o quis ouvir, sempre que teve oportunidade. Se foi ou não ouvido e o que ouviram, isso é outra história, porque na verdade não só é importante o que é dito, mas também o que é ouvido. Ele sabia disso, mas não deixara de acreditar nas palavras, embora ainda mais acreditasse na capacidade de nos escutarmos a nós mesmo e aos outros.

 
20.7.04
 

612  (< 160 caracteres)

Encontrou um amante e ganhou finalmente balanço para deixar de vez o marido, mas foi tal o impulso que acabou por os abandonar aos dois.



 
 

611

Um dia um mestre zen viu-se de relance a um espelho e por momentos pareceu muito intrigado com a imagem reflectida. "Esse aí sou eu?", perguntou em voz alta. Aproximou-se mais do espelho e olhou-se com atenção. "Então esse aí sou eu?", perguntou de novo em voz alta. Olhou então em volta mas nenhum discípulo estava por ali, pelo que guardou para si a sábia conclusão que ia proferir e seguiu caminho, não sem que antes soltasse uma sonora gargalhada.

 
19.7.04
 

610

O aluno perguntou ao mestre qual o significado do zen e este abriu os braços num gesto que parecia abranger tudo. Mas quando o mestre abriu a boca e soltou um prolongado suspiro, o aluno percebeu afinal que ele estava a espreguiçar-se. Foi nesse instante que também o seu rosto se abriu num sorriso luminoso.


 
18.7.04
 

609

O aluno perguntou ao velho mestre qual o significado do zen, mas ele nada respondeu. O aluno insistiu ainda, mas o mestre permaneceu em silêncio. Estava praticamente surdo, mas nada tinha perdido da sua sabedoria.

 
 

608

Um homem sábio isolou-se do mundo para se conhecer melhor, e muito tempo depois chegou à conclusão que essa tarefa era, se não impossível pelo menos interminável. Na verdade, mal começava a se conhecer logo percebia que era já outro, e tinha de começar tudo de novo. A partir dessa altura deixou de perguntar quem era e limitou-se a ser. Tinha percebido que, no fundo, toda a identidade é secreta.

 
17.7.04
 

607

Um aluno pediu um dia ao seu mestre que lhe explicasse o significado do Zen, ao que este respondeu: “Estamos aqui e agora.”.
O aluno não ficou satisfeito e insistiu: “Diga-me então qual o significado do Zen!”.
Mas o mestre respondeu-lhe da mesma forma: “Estamos aqui e agora.”.
“Não sabe dizer mais nada?”, disse o aluno já irritado.
“Posso calar-me.”, respondeu o mestre.
O rosto do aluno abriu-se nesse instante num sorriso luminoso e o mestre retribuiu-lhe com uma vénia.

 
 

606

O discípulo dirigiu-se ao mestre à procura de um conselho, e explicou-lhe longamente o problema. O mestre ouviu-o em silêncio, e em silêncio continuou depois de ele se ter calado. Perante isto, o discípulo recomeçou a sua explicação, de forma ainda mais detalhada. Muito mais tarde, quando finalmente terminou, verificou que o mestre parecia ter adormecido. Sem saber o que fazer, aproximou-se dele um pouco mais, olhando-o com atenção. Foi nesse momento que o mestre lançou um grito agudo que fez o discípulo soltar um sonoro e expressivo “Foda-se!”. O mestre sorriu então e disse-lhe: ”Agora sim, percebi-te”.

 
16.7.04
 

405

Um certo dia deixou de ser sensível à ansiedade. Não que tivesse passado a ser insensível, na verdade continuava a sentir ansiedade, só que agora não lhe dava resposta. Deixou de se impressionar com ela, por assim dizer, e sentia-se muito bem, tão bem que queria que esse estado durasse para sempre. E assim foi, pelo menos nesta história que acabei agora mesmo de contar.
 
15.7.04
 

604 O que é o Zen?

Os alunos perguntaram-lhe o que era o Zen, e o mestre respondeu, “O Zen é…”, e tossiu ruidosamente.

De novo lhe perguntaram e de novo ele respondeu, “O Zen é…”, e tossiu ruidosamente.

Os alunos olharam-se entre si, sem saber o que fazer, excepto um, que ostentava um sorriso luminoso que o mestre se apressou a retribuir com uma vénia.
 
 

603 Lamentável

Um homem lamentou-se durante tanto tempo que se esqueceu do que se queixava, mas muito mais tempo teve de passar até que fosse finamente capaz de parar de se lamentar.
 
14.7.04
 

602 (<160 caracteres)

Esqueceu-se do que aconteceu, e tão profundamente que nem mesmo se lembrava que se esquecera. Antes assim, digo eu, que sei muito bem tudo o que se passou.
 
12.7.04
 
Uma pequena história que me foi soprada pelo vento... (o vento lá fora)*

Amou, casou e teve filhos, tudo em menos tempo que o diabo esfregou um olho, e nem percebeu que dez anos tinham passado. Acomodou-se à sina, e mais dez anos passaram, até uma sexta-feira em que uns olhos azuis lhe mostraram o céu que procurava. Amou então verdadeiramente, mas por muito pouco tempo. A moral desta história é que o paraíso não dura para sempre, nem para sempre se acaba.
 
 

601

Era uma vez um homem que afirmou com veemência estar semi-apaixonado, mas ninguém está semi-apaixonado, nem mesmo semi-enganado, ou se está ou não se está, o muito ou pouco não é opção, e nestas coisas não há meio termo. Na verdade ele estava era apaixonado. Ou enganado? Esqueci-me dum todo!
 
 

6x100
pequenas histórias
ufa!
 
 

600

Queria beber até não se lembrar quem era, foi o que disse aos amigos, e talvez o tenha conseguido, tudo indica que sim, mas o que conseguiu de certeza foi beber até se esquecer que estava completamente embriagado. Não admira que não tenha ido muito longe, morreu logo ali, ao virar da esquina, na contramão.

 
 

599

Um dia o discípulo pediu ao mestre que lhe explicasse o significado do Zen, ao que ele respondeu:
”O zen é como um par de sapatos, o melhor de todos é o que se molda à nossa medida.”
O discípulo pensou um pouco e exclamou:
“Mas o mestre não usa sapatos!”
“E isso também é o zen”, replicou ele de imediato.
Foi nesse momento que o discípulo alcançou a iluminação.

 
 

(<160 caracteres)

597

Adormeceu profundamente e só acordou muito, muito tempo depois, e logo concluiu que não tinha sido um castigo mas sim uma benção. É que estava tudo na mesma!

598

Acordou feliz, mas não encontrou um motivo, e perturbou-se. Tentou recuperar o sentimento inicial e disse então com um imenso sorriso: estou vivo.

 
9.7.04
 

596

Farto de perder o seu tempo e as suas energias a pensar na vida, passou então a fluir numa entrega total à vida, como se o mais importante da vida fosse afinal tão só e apenas viver. A partir desse momento passou a viver na mais completa serenidade. Verdade seja dita, ainda sentia às vezes uma enorme vontade de deitar contas à vida, mas tão depressa como chegava assim desaparecia.
 
8.7.04
 

595

Diz-se que todos os caminhos vão dar a Roma. E talvez seja não tanto porque a Terra é redonda e finita, mas sobretudo porque o que importa é o caminho, e se o percorrermos chegamos sempre onde temos de chegar, a Roma ou a outro lugar. Na verdade todos os caminhos vão dar a qualquer lugar, e todos os caminhos se cruzam. Por isso pouco importa que caminho tomes, desde que seja o teu. Não te preocupes, ele levar-te-á onde tens de ir, a Roma ou a outro lugar qualquer. Mais tarde ou mais cedo! --->
 
7.7.04
 

594

Era uma vez um homem que vivia segundo regras curtas e simples, há muito transmitidas de geração em geração, mas cedo percebeu que elas de pouco lhe serviam, pois a vida era muito mais vasta e complexa do que elas. Foi a partir desse momento que aprendeu verdadeiramente a pensar, e a daí retirar todas as consequências.
 
 

593

Era não só um homem persistente, qualidade que em muitos é vulgar e roça a mera teimosia, mas acreditava também na persistência como o verdadeiro motor de tudo o que existe, o que é sem dúvida incomum num mundo em que se acredita sobretudo no divino, no acaso e na mudança. Para ele a persistência era a mais importante de todas as forças, aquela sem a qual nada existiria, do mais simples ao mais complexo, e persistiu nessa ideia até à morte, que é tão persistente quanto a vida, o que lhe dá até razão, agora que penso melhor nisso.
 
6.7.04
 

592

Ele não sabia a beleza que tinha, e não é que não se conhecesse a si mesmo. Na verdade, ainda que a verdadeira beleza esteja em todos nós, ela só se revela aos olhos dos outros. É por isso que nunca devemos ter medo de nos aproximarmos dos outros, pois são eles que nos revelam o que verdadeiramente há em nós. São eles que nos revelam afinal quem somos. Foi exactamente isto o que ele pensou quando se descobriu belo.
 
 

591

Um sábio procurou durante muitos anos definir o que na vida é realmente importante, mas apenas descobriu afinal que essa busca era o mais importante para si.
 
5.7.04
 

590

Um homem que há muito procurava a sabedoria isolou-se por completo do mundo, e durante anos percorreu o longo e difícil caminho do desprendimento. Mas foi só no exacto momento em que já nada era que percebeu afinal o que é o homem: um ténue mas persistente desejo de ser.
 
4.7.04
 

589

Ele amava tudo o que ela lhe fazia, mas não a amava afinal, não a amava por ser quem era, mas apenas pelo que ela lhe fazia, e isto não era o amor que ela queria. Pelo menos foi o que ela disse, primeiro a si mesma, e depois a ele, antes de o deixar de vez. Ele ficou calado, durante muito tempo, tentando perceber o que se passara. Se amava tudo o que ela lhe fazia como podia não amá-la? A verdade é que nunca ia compreender as mulheres. E muito menos o amor. Mas isso é outra história.
 
2.7.04
 

588

Um homem que não tenha noção do seu próprio ridículo não pode ser outra coisa a não ser feliz, pois o ridículo está no centro da existência humana, e só não dá conta dele quem atingiu o supremo desprendimento de ser nada mais do que é. Assim era ele e assim viveu, até ao fim dos seus dias, ridiculamente feliz.
 
 

587

Começou a escrever e foi até ao fim, mas logo percebeu que todo o fim é provisório pois abre a porta a novos princípios. Assim é a escrita, assim é a vida.
 



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... a ficção no seu mínimo...

Luís Ene

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