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mil e uma pequenas histórias
30.7.03
 
322. N Ícaro :)

Aprendeu a voar com muita facilidade: estava na sua natureza. Gostava de voar liberto nas asas da imaginação, e os seus voos pareciam não conhecer limites. Certo dia, quando finalmente compreendeu, tinha voado já para muito, muito longe, e nunca mais foi capaz de regressar. [A moral desta história é prudente e cautelosa. Deve manter-se entre a realidade e a ficção uma distância segura, nem demasiado pequena nem demasiado grande.]
 
29.7.03
 
321. Contradição

Um homem sentiu certo dia que tinha a capacidade de saborear as palavras, de as cheirar e de as tocar como se fossem simples objectos que se oferecessem na totalidade aos seus sentidos. No entanto, logo descobriu que na verdade as palavras já nada lhe diziam, ou então, e o resultado era o mesmo, estava surdo à sua magia. O certo é que ouvia as palavras mas não as compreendia, olhava-as mas não as decifrava. As palavras tinham-se tornado portas fechadas que só levavam a si mesmas, pensou então, e o leve agridoce dessa metáfora perdurou por muito tempo nele.
 
28.7.03
 
eNigmáticas

318.

O mestre disse certo dia com um sorriso na alma: “Antes de mais nada é preciso encontrar um centro, o nosso próprio centro, depois bastará apenas que o orbitemos, por mais excêntricas e inconstantes que sejam as trajectórias. Nada mais fácil.” [O que o mestre não disse, mas o seu sorriso bem revelou, é que aquilo que nos prende é a maior parte das vezes o mesmo que nos liberta.]

319.

O mestre disse com rispidez a um aluno que lhe pedia orientação espiritual: “Ó pá, vai mas é cagar à mata!” Todos os presentes riram a bom rir, e nunca as gargalhadas lhes haviam soado tão sérias e tão profundas. O interpelado é que não gostou mesmo nada, mas percebeu a mensagem, e defendeu-a a partir daí com paixão. [O que dizemos nunca será ouvido se não for sentido primeiro.]

320.

O mestre disse na sua voz fina e sumida: “A maior parte das vezes devemos calar-nos. Nada perturba mais do que as palavras, mesmo as mais sábias e bem intencionadas.” A este discurso seguiu-se uma acalorada discussão que parecia não ter fim. Na verdade, só terminou quando o mestre perdeu por completo a paciência e gritou três vezes por silêncio. Os alunos ficaram tão admirados que não falaram durante dias.
 
25.7.03
 
SEXO, SEXO E SEXO (ao meu pipi)

316.

Durante muito tempo teve como verdadeiro que o sexo o aproximava de Deus mais do que qualquer outra actividade. E era bom, muito bom! Mas quando deixou de acreditar em Deus o sexo nunca mais foi igual. [Esta história quer dar ao leitor a possibilidade de a terminar: 1) Passou a ser melhor; 2) Passou a ser pior. A escolha é sua. Não se iniba!]

317.

Quando a virgem reciclada encontrou o eremita devasso tudo poderia ter acontecido, pelo menos de acordo com as regras dos homens e do desígnio divino, mas a verdade é que se limitaram a um encontro sexual fugidio e de baixa espiritualidade. [A moral desta história é elevada: há coisas na vida que escapam sempre às previsões, mesmo às mais rigorosas.]
 
24.7.03
 
315. Reiniciar (ao pTd)

O homem teve a certeza que tudo estava terminado, mas logo se apercebeu que tudo começara de novo, sem dá cá aquela palha, como num golpe de magia, com muito menos do que um simples abracadabra. [A moral desta história é muito mais longa do que ela, pelo que, por uma simples questão de equilíbrio, se apresenta apenas uma versão bastante reduzida: a vida continua.]
 
 
314. Certeza única (ao Registo)

O homem estrebuchou, uma e outra vez, com todas as suas forças, tentando agarrar-se à vida. Mas não havia nada a fazer, só a morte ali estava, tranquila, à sua espera. [A moral desta história é muito mais longa do que ela, pelo que, por uma simples questão de equilíbrio, se apresenta apenas uma versão bastante reduzida: a vida termina.]
 
23.7.03
 
313. Pequenas histórias (à Bomba Inteligente)

Um certo dia, estava o homem a cuidar das suas pequenas histórias, como todos os dias acontece, quando tropeçou num estranho pensamento: “As histórias nem sempre estão interrelacionadas e nem sempre são histórias.” Ficou durante algum tempo a olhar pensativo as pequenas histórias alinhadas à sua frente, mas logo retomou o seu labor com um sorriso aberto. As pequenas histórias nem deram por nada. [A moral desta história é bastante duvidosa: a literatura nada tem a ver com a inteligência.]
 
22.7.03
 
312. Sempre tão perto e tão longe

Colocou-se no exacto centro entre dois pontos, e várias vezes olhou de um para o outro, interrogando-se de qual estaria ele mais de perto e de qual estaria ele mais longe. Apesar de saber muito bem que estava à mesma distância geométrica dos dois pontos, também sabia que só ele mesmo poderia dar uma resposta efectiva quanto à verdadeira distância que o separava de cada um deles. Pouco demorou até que, ao mesmo tempo que o seu olhar deslizava num vaivém, o homem começasse então a repetir num suave murmúrio esta ladainha: tão perto, tão longe… tão perto, tão longe…
 
21.7.03
 
311. Mais uma (oferta do JK'S Diary)
 
 
310. Gestro (ao Rui Horta)

Esticou o dedo indicador, como podia ter feito outra coisa qualquer, mas logo o braço, o ombro, a cabeça e o corpo inteiro se prolongaram num movimento único e inconfundível que lhe apontou o olhar muito para além da linha do horizonte. Foi nesse preciso instante que o homem pensou afinal que todos os gestos contam a sua pequena história, e que todas as histórias são na verdade o registo de um único gesto. [A moral desta história não é muito clara, confesso, mas talvez se possa dizer que os gestos e as palavras têm às vezes as mesmas ideias.]
 
19.7.03
 
309. Dia di bai — Dia de ir (a Calíope)

Atravessou o labirinto de olhos fechados, guiado apenas pelo som dos seus passos. Quando lhe perguntaram como tinha conseguido sair em tão pouco tempo, limitou-se a dizer que tinha ignorado o labirinto e deixara-se ir. [A moral desta história está no centro de cada um dos leitores. Para lá chegarem basta que se deixem ir e nada mais. Dêem notícias!]
 
18.7.03
 
HESITAÇÕES

307. Errática

Todas as coisas têm um lado mais profundo através do qual se pode aceder ao seu verdadeiro ser. Entrar nas profundezas de uma qualquer coisa é penetrar no mais profundo do nosso eu universal. Foi isto que ele disse a si mesmo, ao mesmo tempo que olhava de soslaio para o pequeno bloco de notas do outro lado da mesa.

308. Periclitante

Mergulhou no mais fundo de si mesmo para fugir dos outros de uma vez por todas. Foi uma enorme desilusão. Encontrou um pequeno espaço mal iluminado e bafiento. O pior mesmo foi que os outros também lá estavam. O homem saiu então de si mesmo o mais rápido possível, e nunca mais lá voltou até ao dia da sua morte.
 
17.7.03
 
306. Dar tempo ao tempo (à Deméter, de novo:)

O Big Ben e o Big Bang encontraram-se um certo dia à esquina do tempo, mas ainda o primeiro não acabara de falar, já o segundo partira apressado. Muito mais tarde de novo se encontraram, e se o Big Bang estava já longe daquilo que o Big Ben começara a dizer, a verdade é que este continuava ainda a sua lenta lengalenga: dá tempo ao tempo que só chega o tempo quando se dá tempo ao tempo que só chega a tempo quando se... [A moral desta história está em permanente crescimento, mas a seu tempo será revelada.]
 
15.7.03
 
ECOS DE SI

304.

Escutar o que os outros têm para dizer, ou o que nós temos para dizer? Escutar o que temos para dizer aos outros, ou o que temos para dizer a nós mesmos? O que será mais importante? Mal o homem fez estas perguntas a si mesmo logo lhe surgiu a resposta. Escutar os outros ou a nós mesmos é igual, importante é que se tenha alguma coisa para dizer. Disse-o a quem muito bem entendeu, escutou-o quem quis.

305.

Percebeu com uma estonteante certeza que o espaço entre as diversas partes de si aumentara. Não era que estivesse agora mais disperso, mas apenas que o seu ser se expandira sem sombra de dúvida. Era uma sensação estranha, esquisita, como se o crescimento do nada aparente entre os diversos componentes os tivesse tornado mais reais, quer em si quer no seu relacionamento. Pela primeira vez sentiu-se uno com o universo.
 
14.7.03
 
303. Mais uma (O fim do Mundo, oferecida pelo Joao Pedro, e está no bloco de notas, ali ao lado, 6:44 am - Friday,July 11, 2003)
 
 
301. Retomar

Iniciou a sua viagem como qualquer outro, saltando ligeiro de blog em blog, detendo-se às vezes um pouco mais, deixando aqui e ali breves comentários. Depois passou a ter os seus preferidos, e o número de visitas diminuiu então na razão inversa do volume dos comentários depositados. Foi por essa altura que criou o seu próprio blog e a ele se dedicou de corpo e alma a tempo inteiro. Mas um dia chegou, estava-se mesmo a ver, em que o apagou e voltou ao princípio. [Esta história não tem qualquer moral, ou, quem sabe, talvez seja essa a sua moral.]

302. O momento

O paraíso é um território exíguo e esquivo: um lugar de passagem onde chegamos por acaso, e de onde já saímos quando julgamos ainda lá estar. Foi isto que o homem adivinhou naquele momento, o mesmo momento em que lhe foi fácil acreditar que Adão e Eva talvez não tivessem sido expulsos do paraíso, mas sim que aquele lhes tivesse fugido debaixo dos pés. [A moral desta história é já por demais conhecida: se o paraíso não vem até ti, escusas de ir até ele.]
 
11.7.03
 
TRÊS EM UMA (ao Esquisito)

298./299./300.

Pegou na sua ideia mais audaciosa, estabeleceu um plano de acção e começou a trabalhar.
[Passaram-se muitos anos desde então, mas o homem ainda não terminou o que então principiara. Tinha, sem disso ter tomado consciência, iniciado um projecto para toda a vida.]
[Não deu em nada. Mesmo nada! A ideia era audaciosa, é certo, mas o homem era inepto e relapso. E ele bem o sabia. Desistiu quase de imediato.]
[Muitos se lhe juntaram, e a ideia cresceu até cobrir todo o planeta. É hoje inquestionável que o desaparecimento da raça humana foi uma das suas principais consequências.]
E isto por causa da leitura do horóscopo do dia, pequeno mas promissor! Quem diria que uma coisa assim podia acontecer?
 
10.7.03
 
297.

Sempre lhe disseram que pensava de mais e era muito complicado, mas ele demorou muito tempo até perceber que a maior parte das pessoas funcionava efectivamente de modo muito diferente do seu. E no entanto ele era humano, e julgava-se mesmo um exemplo universal, pelo menos no essencial. Mas finalmente concluiu que não era assim. E isso ainda o fez pensar mais. E as pessoas ainda o acharam mais complicado.
 
 
296. Pequenas histórias

Era vez um homem que há muito escrevia pequenas histórias, e era considerado um mestre nessa arte, mas nunca sabia bem o que dizer quando lhe pediam conselhos sobre como as contar. Então, um certo dia, reuniu todas elas e pediu-lhes uma opinião. Após uma acalorada discussão, foram aprovadas, por unanimidade, três recomendações: uma pequena história não deve, de forma alguma, ambicionar ser grande; uma pequena história deve conter, no mínimo, duas ideias fortes, de preferência antagónicas; uma pequena história deve sempre corresponder a uma necessidade. Falou-se bastante de harmonia e contraponto. E também de contenção. Muita contenção. E equilíbrio.
 
8.7.03
 
295. Mais uma (Encomenda, da Deméter)
 
 
BLOGUICES (ao socioBlogue)

292.

Era uma vez um blog e o seu dono, ou seja, o Nelson e o blog do Nelson, e todos os que os conheciam comentavam que um era a cara do outro. Na verdade, o que um dizia, o outro dizia também, e chegou mesmo um dia em que se tornou impossível distingui-los, sobretudo para aqueles que melhor os conheciam. [A moral desta história é um intrigante axioma: o blog é o dono do blog.]

293.

O blog começou por ser pequeno, mas logo cresceu rapidamente, post a post, até ser aquilo que hoje é, um longo registo de pequenas recordações de duvidosa importância. Foi isto que o seu dono pensou, e ponderou até apagá-lo, mas era um homem muito esquecido, e o blog tinha uma memória extraordinária. [A moral desta história não oferece quaisquer dúvidas: se tens má memória, confia então na do teu blog.]

294.

O dono do blog só percebeu que estava a perder o controle quando voltou a publicar as primeiras entradas e foi por aí adiante. Durante muito tempo ficou a pensar o que devia fazer. Mas o melhor foi que ninguém deu por nada, e o blog deu várias voltas sobre si mesmo, qual Fénix renascida. Para o dono foi um santo descanso: nunca mais teve de se preocupar verdadeiramente com a actualização do seu blog. E viveram felizes para sempre.
 
7.7.03
 
291. A vida é difícil e ponto final

A vida é difícil. A vida é mesmo difícil. Esta é a verdade. Foi isto que ele sempre defendeu, mas nunca se lamentou ou queixou, dizia-o apenas, com um sorriso sereno de desafio. Era um homem sábio e determinado. Seguiu sempre o seu caminho, e aceitou todas as dificuldades que encontrou como parte integrante da viagem maravilhosa que é viver.
 
5.7.03
 
HISTÓRIAS REUNIDAS

286.

No início foi pedido a todos os participantes que se apresentassem. Quando chegou a sua vez, o homem não conseguiu dizer nada, nem mesmo o seu nome. E isso disse muito sobre ele, apesar de ter atrasado bastante a reunião.

287.

Adormeceu sem apelo nem agravo no princípio da reunião e só acordou quase no final. Mas a verdade é que ninguém deu por nada, talvez por ele ter mantido os olhos abertos e o corpo direito. Os participantes consideraram mesmo o seu silêncio muito significativo.

288.

Estava repousado e feliz, nada fazendo, até que alguém o lembrou que estava numa reunião. O dia já não lhe correu bem. E muito menos a reunião. Coisas que acontecem.

289.

Quando foi anunciado que iam começar a reunião com um “ice breaker”, o homem logo se ofereceu para preparar uma caipirinha para todos. Felizmente, estava numa reunião dos Alcoólicos Anónimos e ninguém levou a mal.

290.

A reunião estava cada vez mais aborrecida e o homem concentrou todos os seus esforços em manter-se atento, adoptando uma postura corporal rígida, com os dentes cerrados e os olhos esbugalhados. Cinco minutos antes do final foi conduzido de urgência ao hospital mais perto para receber os cuidados médicos adequados.
 
 
285. Mais uma (pequena história oferecida ao 1001 que está no bloco de notas ali à esquerda, comentário de Interaubis Lovin 8:03 am - Thursday,July 3, 2003)
 
3.7.03
 
283. (ao Telepatia)

Certos amores são tão constantes na sua inconstância como a respiração (ora se ama, ora se detesta) e do mesmo modo essenciais à vida. Tudo isto o homem disse a si mesmo, profundamente, não sei se no tempo de uma inspiração ou de uma expiração.

284. (ao Caetano)

Defeituosas, mancas e inconclusas são todas as palavras, mesmo aquelas que vão direitas ao coração dos homens e lhe marcam a batida por momentos, mais ou menos longos. O mesmo para as histórias que as palavras contam! E será preciso dizer que todos nós somos as histórias que contamos, aos outros e a nós mesmos?
 



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... a ficção no seu mínimo...

Luís Ene

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