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mil e uma pequenas histórias
31.1.03
 
150.

Certo homem adoeceu gravemente e um dia as dores eram tão fortes que várias vezes chamou pela morte. Por isso não ficou surpreendido quando ela chegou, nem mesmo quando lhe estendeu um apetitoso morango. Agarrou-o com cuidado. Como era vermelho e doce o seu sabor.

149.

Vivia há muito tempo longe do mundo, no entanto o mundo não deixava de vir até ele. Ninguém o tinha ouvido pronunciar uma única palavra, mas vinham de muito longe para lhe pedir orientação. Ele limitava-se a escutar, primeiro as perguntas, depois as respostas, sempre tranquilo e silencioso. O seu rosto ostentava às vezes um leve sorriso. Todos o consideravam um homem santo e sábio e a sua fama estendeu-se cada vez mais. Por estranho que pareça ninguém pensou que ele não podia falar. E muito menos que não os pudesse ouvir. Continuaram a procurá-lo e a encontrar plena satisfação.

148.

Foram ontem lançados, pela manhã, dez mil balões brancos, um por cada aluno, em memória do estudante assassinado há dois anos. Não se sabe quantos pessoas assistiram mas foram muitas, mais do que os balões. O morto, infelizmente, não estava presente. O assassino também não, caso estivesse teria pensado mais uma vez no número de dias em que foi condenado, apenas ligeiramente inferior ao número de balões lançados. Por outro lado, a pena aplicada era mais velha que o condenado à altura do crime. Tudo é relativo menos a morte.

147.

Certo homem pensou que estava preparado para se virar seriamente para dentro de si. Mas a imaginação é uma estrada perigosa que ora nos afasta ora nos aproxima de nós, e quem nela se aventure precisa ter todo o cuidado e nunca esquecer quem é, ou o mais certo será que fique fora de si. Foi o que lhe aconteceu.
 
30.1.03
 
146.

Faz hoje um ano que o meu amigo Rui caiu em si. Aconteceu de repente, sem qualquer aviso ou premeditação, apanhando-o completamente desprevenido, circunstância que em muito terá contribuído para o que veio depois. Claro que é preciso também não esquecer que ele não se conhecia a si mesmo muito bem: desprezava por completo a meditação e nunca reflectia com profundidade sobre os seus actos. Penso muitas vezes o que poderia ter feito para o ajudar, era um bom amigo e sinto muito a sua falta. Seja como for, o resultado mantém-se inalterado, desde então nunca mais ninguém o viu.
 
28.1.03
 
145.

Quando se sentava ao computador acontecia-lhe sempre qualquer coisa desagradável, inexplicável. Consultou vários técnicos de informática, mas todos se limitaram a encolher os ombros e a dizer que o sistema estava em perfeitas condições. Um amigo seu, de longa data, com grandes conhecimentos na área da dinâmica relacional, garantiu-lhe, sem margem para dúvidas, existir um problema entre a cadeira e o teclado. O homem ficou perplexo, nunca tinha surpreendido qualquer discussão entre eles. Falou demoradamente com a cadeira e o teclado, mas foi incapaz de alterar a situação: a incompatibilidade era já muito profunda e o divórcio a única solução.
 
27.1.03
 
144.

Ainda mal o dia começara e já o mesmo de sempre acontecia àquele homem que em nada se distinguia dos outros: andava e pensava, comia e pensava, sentava-se e pensava. Quem lhe dera apenas andar, apenas comer, apenas estar sentado, tranquilo, nada pensando. A vida seria muito mais simples se tudo acontecesse naturalmente, pensou o homem enquanto mais um dia o atravessava pouco a pouco.
 
 
143.

Um homem de quarenta anos esteve de pé, imóvel, durante vinte horas e onze minutos. Estava tranquilo, nada fazendo, mas perto do fim descontrolou-se, os pés doíam-lhe muito, a batida cardíaca atingiu cento e quarenta pulsações, e teve medo de cair sem forças. Ouviu então com nitidez a voz do seu mestre que lhe repetia ser a impaciência a verdadeira causa de todos os males.
 
 
142.

Estava entre a partida e a chegada, e estar entre era tudo o que mais desejava, mas o carro avançava sempre, e ele nada podia fazer senão estar, estar a chegar. [A voz negra no rádio cantava: conheço os teus defeitos e as tuas qualidades, vou satisfazer as tuas necessidades.] O homem riu-se, estava então ainda mais perto, mais perto de chegar ao seu destino.
 
24.1.03
 
141.

O homem assustou-se quando se viu defronte a si mesmo. Era e não era ele, mas o mais intrigante era que não conseguia decidir qual era ele e qual era o outro. Por instantes pensou em fugir, mas ficou, se por coragem ou por medo nunca o soube. O outro, que era e não era ele, olhou-se nele e sorriu. Ele, que não sabia quem era, sorriu também e o sorriso tornou-se um só. O homem sorriu então de si mesmo, soltou uma pequena gargalhada abafada, e disse em voz baixa: é difícil viver quando nos levamos demasiado a sério.
 
23.1.03
 
140.

O professor explicava com desenvoltura que a língua portuguesa está cheia de pequenas surpresas e perplexidades. [Se consultarmos um qualquer dicionário podemos descobrir, por exemplo, que a bufa e o peido são ambos ventosidades expelidas pelo ânus, com a diferença que o que um tem de cheiro, desagradável, tem o outro de estrépito, perturbador. Mas se peidar é o que a palavra sugere de imediato, já bufar é expelir ar com força pela boca ou pelo nariz, e não pelo ânus, como se poderia concluir apressadamente. No entanto, se o bufador é isso mesmo, aquele que dá bufas, já o que dá peidos, só se o fizer em grande quantidade terá uma designação, será um peidorreiro.] Os alunos ouviam com atenção e sorriam de interesse.
 
22.1.03
 
139.

Hoje aconteceu-me uma coisa extraordinária, acordei a sonhar, ou talvez tenha adormecido acordado, não sei, a vida é muita complicada, sobretudo quando se procura uma explicação para tudo e não se aceita o mundo tal e qual como ele é. O problema é que o mundo não se explica com facilidade (a relação causa e efeito está caduca e a teoria das catástrofes não passa de uma ferramenta) e, por outro lado, a vida, essa, limita-se a acontecer e nada mais. No meio de tudo isto não se admirem que eu avance, com cautela, entre o sonho e a realidade.
 
 
138.

O homem estava sentado na avenida defronte ao mar revolto. Estava imóvel, alheio ao vento e à chuva, alheio também ao mar, completamente perdido dentro de si. Se o olhassem, se ali passasse alguém, facilmente o confundiriam com uma homenagem de pedra a algum poeta local. Se era um poeta, não sei, apenas o avistei ao longe e, agora que penso nisso, era perturbadora a sua quietude, nem mesmo o cabelo e a roupa se agitavam, mas nem por um momento duvidei da sua humanidade. Era um homem, disso tenho a certeza, um homem como eu, perdido dentro de si.
 
17.1.03
 
137.

Escreveu a primeira frase: há momentos na vida em que sabemos quem somos, como se os nossos pensamentos, emoções e actos tivessem finalmente um centro, como se fôssemos unos. Depois parou e ficou durante muito tempo a pensar quem era. “Humano, demasiado humano” foi a única resposta que lhe agradou.
 
15.1.03
 
136.

Uma história pode ser dobrada sobre si mesma até ficar pequena, muito pequena, dependendo da sua espessura e da vontade de quem a conta. O mesmo se poderá dizer se o processo for o contrário, desdobrando-se agora a história para além de si mesma até ficar muito, muito grande. Se a palavra é o limite último da pequenez da história que se conta, já a sua expansão não conhece, em teoria, verdadeiras limitações, e a história poderia continuar para sempre sem fim. Mas ficaria por responder a velha questão que todos conhecemos bem: porquê o ser e não o nada?
 
14.1.03
 
135.

A vida é feita de poesia, disse o escritor cego, os livros são apenas ocasiões para a poesia. Isto é verdade. Por isso, leitor, lê a vida e vive os livros, essa é a única forma de beber a poesia e de saborear a vida. E nada de ficar assustado com as perplexidades, elas estão no exacto centro de tudo o que existe, a vida e a poesia. E não fiques à espera, não penses; quem foi que te disse que a inteligência tinha alguma coisa a ver com a capacidade de viver a vida como se fosse um poema?
 
 
134.

Muitas vezes acontecia-lhe esquecer-se de quem era, sem qualquer aviso prévio ou razão aparente. Não era uma sensação completamente desagradável, mas podia ser bastante aborrecido, tendo em conta as consequências óbvias. Decidiu então escrever o mais importante de si mesmo, aquilo que o tornava diferente e singular (não deviam ser precisas muitas palavras) e trazê-lo consigo, talvez um pequeno papel colado na carteira, talvez uma pequena inscrição numa pulseira, qualquer coisa que o fizesse regressar a si. O seu nome não era importante, na verdade pouco dizia de si, a sua idade, sexo e coisas que tais, estavam à vista, e quanto às suas características morais, elas reflectir-se-iam necessariamente nos seus actos. Acabou por fazer uma pequena tatuagem nas costas da mão direita, junto ao polegar, onde se podia ler a palavra SOU, não se fosse esquecer de ser, que isso sim, é que seria completamente desagradável e bastante aborrecido.
 
13.1.03
 
133.

As palavras são pequenos seixos rolados, pequenas peças de uma engrenagem maravilhosa, é engraçado dispô-las de forma a quase fazerem sentido, como se fossem mais do que meras palavras. E, tudo muito bem visto, o que são as palavras mais do que as pedras, mais do que os frutos, mais do que as estrelas? As palavras são pequenas armadilhas para capturar o real dentro de nós. Assim ia pensando o homem quando tropeçou e caiu. Pensar é importante, muito importante, mas é preciso não nos esquecermos que, ao mesmo tempo que nos aproxima do real, distrai-nos da realidade. Muita atenção!
 
 
131.

Ficou a pensar em quantas palavras seriam precisas para contar uma história, não uma história qualquer, mas a mais pequena de todas as histórias. Cada história deve ser contada com as suas próprias palavras, nem de mais nem de menos, e esta não era uma situação diferente. Uma única palavra parecia-lhe uma resposta pouco provável, no entanto foi a conclusão a que chegou. Essa palavra singela seria então a história mais pequena, uma história onde o único personagem seria o leitor (cada um deles) e a única acção a leitura (e a única emoção talvez o seu espanto). [132.] Chove.
 
10.1.03
 
130.

Um recém nascido do sexo masculino foi encontrado ontem de manhã na passadeira de triagem da empresa gestora dos resíduos sólidos urbanos de Setúbal. Segundo um dos funcionários este não foi o primeiro caso. Desta vez estava morto, disse ele, mas noutras estavam ainda vivos, ora nessas situações aconselhava vivamente a que os matassem primeiro, a vida não é lixo que se deite fora. O homem veio a ser despedido, poucos dias depois, e foi apresentada queixa às autoridades competentes. Diga-se o que se disser, uma coisa é certa, o humor negro é uma arma muito incompreendida, lá isso é.
 
 
129.

Gostava de escrever à mão. Tinha canetas de muitas cores; uma era cinzenta, como os dias tristes, outra era de um azul que lembrava o início de um dia de sol. Eram na maior parte bojudas, mas também as havia surpreendentemente esguias. Costumava escrever em diferentes cores: gostava muito do verde e o lilás deixava-o sempre exuberante. Os seus textos eram muito diferentes uns dos outros, consoante a caneta. Não era que para cada texto usasse uma caneta diferente, era mais que cada uma delas escrevia os seus próprios textos. Os textos não eram grande coisa, as canetas eram excelentes.
 
8.1.03
 
128.

Blog, blog, blog. Lembra o som de uma gota gorda a pingar à noite. Ping, ping, ping, lembra uma gota a pingar, na China. E plim, plim, plim, lembra uma gota anémica com falta de dinheiro. O B é mais forte do que o P, tenho a certeza, um Bum é um estrondo, um alvoroço; por outro lado, um Pum, bom, um Pum só faz sentido em Pim, Pam, Pum, cada bola mata um e por aí adiante. Mas onde é que eu ia? Blog, sim, Blog, é sem dúvida muito mais impressionante que Plog, sim, Blog, fica mesmo bem.
 
 
127.

Leu a frase duas vezes, em dois locais diferentes, e gostou tanto dela que a quis para si. Abriu o velho caderno vermelho e escreveu-a com uma letra pequena e apertada: tudo é impermanente, da paixão à dor de dente. Já não tinha dentes, nem paixões, mas sabia que o mundo está sempre em constante mudança. Escreveu mais frases, mas assinalou aquela com uma flor de jasmim, o amarelo da flor sobre o branco da página, ou talvez fosse o contrário, o certo é que sempre piscava o olho direito, o único que conseguia piscar, antes de fechar o caderno.
 
 
126.

As histórias nos livros estão mortas quando não são lidas. É o leitor que lhes dá vida com o sopro do seu ser. E são sempre histórias diferentes de cada vez que renascem. O que está escrito só vive através do leitor, este pode ser definido como um ser que vagueia em cemitérios de histórias devolvendo-as à vida com uma atenção passageira. O escritor, por sua vez, é um assassino, as histórias morrem quando ele as encerra num livro, o que não é de estranhar, para quem acredite que matamos aqueles que mais amamos. E a morte fica-lhes tão bem.
 
7.1.03
 
125.

Não me parece provável que a humanidade alguma vez se canse de contar e de ouvir histórias. A mim, às vezes, cansa-me contar histórias, outras vezes, ouvir, mas quando não me apetece contar apetece-me ouvir, sempre uma ou outra coisa ainda que não as duas ao mesmo tempo. Nisto não devo ser diferente do resto da humanidade porque, ao fim e ao cabo, sou humano, e nunca me canso de contar e ouvir histórias. É por isso que acredito que as histórias nunca vão acabar de ser contadas e de ser ouvidas, enquanto a humanidade existir e mesmo depois disso.
 
 
124.

As histórias ainda hoje começam com ERA UMA VEZ, mas muito poucas vezes terminam com E FORAM FELIZES PARA SEMPRE. O fracasso substituiu a vitória, a felicidade foi vencida pelo desespero, os heróis tornaram-se anti-heróis (a falência do homem e a degenerescência do seu carácter está agora no centro de todas as histórias), e o final nunca é feliz. O tesouro maravilhoso que era sempre encontrado no final das histórias deve agora continuar perdido para sempre. Perdida a inocência da antiga sabedoria, sabemos que uma história nunca vai acabar bem e sentimo-nos felizes com isso. E viva o happy end.
 
6.1.03
 
123.

Um, dois, três... aí vou eu a toda velocidade, após o sinal de partida, pernas para que te quero, neste caso, palavras, uma após a outra, é de cortar a respiração, a velocidade aumenta, as palavras crescem, todos os mostradores apresentam agulhas em alta, os números rodam sobre si mesmos, incrível, impressionante, espectacular, nunca se viu nada assim, de certeza que vou entrar no Guiness Book of Records, a meta está à vista, já vejo a faixa a agitar-se ao vento da vitória mais do que certa, só falta mesmo mais um bocadinho, estou quase, quase, quase... na palavra centésima.
 
2.1.03
 
122.

Embriagou-se antes da meia-noite e perdeu o fogo de artifício. Acordou já o sol ia alto por detrás da cortina cinzenta, e apressou-se a tomar conhecimento da sua identidade. Tinha sempre dificuldades em saber quem era quando acordava; existiam várias pessoas dentro de si a reclamar a realidade, podia ser qualquer uma delas. Olhou à sua volta à procura de si mesmo, à espera de uma memória, de um reconhecimento, mas nada aconteceu. Observou-se ao espelho e não sentiu nada, era apenas uma imagem, uma imagem sem significado especial. Deitou-se de novo. Adormeceu. Sonhou que era ele mesmo outra vez.
 



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