mil e uma pequenas histórias
805 (sms)
Não havia mais nada para falar, mas ele ainda queria dizer alguma coisa, e disse. Mais valia ter ficado calado, pensou depois, mas a verdade é que tanto fazia.
804 (sms)
Ficou ali, lamentando-se do que lhe acontecera, e muito tempo depois ainda ali estava, que é o que acontece a quem se lamenta demais.
803 (sms)
“O que essa mulher me fiz sofrer!”, exclamou ele, e não era um erro gramatical mas uma honesta tentativa de dizer a verdade.
802 (sms)
O que se pode dizer com meia dúzia de palavras? Muito, mesmo muito, muito mais do que se imagina. Basta calar bem fundo em nós a arrogância de tudo explicar.
801 (sms)
Pela manhã reviu a sua vida, pesando causas e consequências. Foi então que um pensamento fugaz lhe despertou um sorriso que o iluminou todo o dia.
800
Mudou-se a si mesmo mas a sua vida não se alterou. Mudou de vida, mas permaneceu o mesmo. Só então percebeu que já era quem queria, e nada precisava fazer a não ser manter-se assim.
799
Viu-a numa fotografia e apaixonou-se de imediato por ela. Nunca teve quaisquer dúvidas sobre os seus sentimentos, de cada vez que a olhava tinha sempre a certeza. Não a procurou, e poderia tê-lo feito, mas nunca deixou de a amar.
798
A mão escreveu na folha em branco uma frase simples, bela e penetrante. O homem, apanhado de surpresa, olhou para o lado e fez de conta que não era nada consigo. A mão agarrou a folha, amachucou-a e deitou-a no caixote do lixo. O homem olhou a folha em branco à sua frente e suspirou.
797
Porque queria parecer mais magro, certo homem passou a andar na companhia de gordos. E porque queria parecer mais inteligente, passou a andar na companhia de idiotas. Verdade seja dita as coisas não lhe correram bem: os gordos achavam-no idiota, e os idiotas achavam-no gordo.
796 (sms)
Isso é outra história, disse ela, e tinha toda a razão, mas para ele era apenas um novo capítulo. É preciso dizer mais?
795
Foi-se embora numa sexta-feira, diz sempre que lhe perguntam por ele. E nada mais diz, por muito que insistam. Cada história tem o seu ponto final, ela sabe muito bem que assim é. Eu também.
794 (sms)
Nunca se arrependeu de nada: fez sempre o melhor que podia. [Que a terra lhe seja leve.]
793
Um certo palavrão, que não vou aqui nomear, achava-se muito importante, tão importante que nunca perdia uma oportunidade de o afirmar. A princípio limitava-se a dizer que era seguramente a palavra mais usada, o que talvez até fosse verdade, vá-se lá saber, mas com o tempo refinou a sua argumentação, chegando mesmo a garantir que só através dele se podia expressar o indizível. Não fosse eu saber muito bem o que quero dizer e talvez agora o chamasse pelo nome.
792 (sms)
Certo dia perdeu o medo de existir que há muito o dominava. Procurou-o com afã, durante muito tempo, e teve sorte: nunca o conseguiu encontrar.
791 (sms)
Entrou um e saiu outro. Nada mais vulgar.
790 (sms)
A um homem que desejava ser feliz foi-lhe aconselhado que sorrisse sempre, o que ele fez, e tanto sorriu que se habituou.
789
"Não escrevo para ser lido, escrevo para que possa ser lido", disse o escritor, olhando o jornalista por cima dos óculos.
"Mas afinal quer ou não ser lido?", insistiu o jornalista, com um sorriso que acentuava a ironia da pergunta.
"Preocupo-me muito mais com as minhas acções do que com a merda dos resultados", respondeu o escritor cruzando os braços. E nada mais disse. Na verdade essa foi a sua última entrevista, ainda hoje citada e lembrada com muita frequência.
788
Encontraram-se ao princípio da noite num quarto de hotel. Quando ela chegou ele estava deitado na cama, todo vestido, os olhos fechados de sono. Deitou-se ao seu lado e adormeceu também. Quando acordaram há muito era hora de irem embora. Sorriram, trocaram beijos apressados e saíram. Ainda hoje, muitos anos depois, recordam esse dia com uma ternura muito especial.
787 De repente sentiu-se só, profundamente só, e essa sensação avassaladora dominou-o por completo. Depois sorriu, passou a mão pelo cabelo curto, e recordou a si mesmo que estava completamente só. Não era caso para alarme.
786 (sms) “O que faço à minha vida?”, repetia a si mesmo sem cessar dia após dia. E enquanto assim agia a vida fazia dele o que muito bem queria.
785 (sms) Morreu várias vezes ao longo da vida, e de nenhuma se arrependeu. Queria, acima de tudo, viver com intensidade.
784
Há muitos anos que não perguntava a si mesmo por que escrevia, no entanto essa pergunta não estava morta nele, acontecia apenas que a sua escrita dava todos os dias resposta a essa velha pergunta.