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mil e uma pequenas histórias
31.8.04
 

658

Viveu entre o que foi e o que podia ter sido, e nesse intervalo fugidio escoou-se toda a sua vida.
 
 

657

Despertou e sentiu-se muito diferente, mais sereno, mais lúcido, mais determinado. Demorou ainda algum tempo até perceber que estava morto.
 
30.8.04
 

656

É assim mesmo que eu sou, disse ele, e não posso mudar! E era verdade, não porque ele fosse assim mesmo, mas porque era assim mesmo que ele queria ser.
 
27.8.04
 

655 (30 palavras / 153 toques)

É verdade que 2+2=4, em tudo menos no que respeita às palavras, onde o todo é sempre maior do que a soma das partes. Este é o princípio do contraditório.
 
26.8.04
 

654

Era uma vez um homem que aprendeu a fazer todos os dias o que tinha de fazer, que é mais ou menos o que não pode afinal deixar de ser feito: respirar, comer, andar, dormir e outras pequenas coisas que fazem a vida ser vida. Sabia que tinha deixado progressivamente de fazer muitas coisas, desde logo preocupar-se com o que fazia, e acreditava que com o tempo ainda faria menos. Mas não se esforçava muito para que assim fosse; na verdade, tudo lhe acontecia de uma forma natural que o deixava tão feliz como um simples gole de água pura.
 
24.8.04
 

652

O conto não perde tempo, e se for muito, muito pequeno, então não tem mesmo é nenhum tempo a perder.

653

Todo o prazer está na espera, quer se espere que comece, acabe ou se repita.

 
23.8.04
 

651 Sete palavras

Fechou os olhos, e continuou a vê-la.
 
 

650 (13 palavras / 88 toques)

Encaixotou cuidadosamente todas as suas coisas e foi-se embora, deixando tudo para trás.
 
22.8.04
 

649 (160 toques)

Como num número de magia sentiu-se dividido, serrado ao meio; mas era bem real, pelo que teve de se sujeitar a muitas operações até recuperar afinal a unidade.
 
 

648

Ela envolveu-o num abraço apertado, os seios esmagados nas costas dele, a respiração acariciando-lhe o pescoço, e ele sentiu-se tão feliz que desejou morrer naquele exacto instante. Tal não aconteceu, no entanto, e veio a morrer muito mais tarde, quando estava só e infeliz mas cheio de vontade de viver.

 
20.8.04
 

647 (25 palavras, 136 toques)

Era um homem completamente vulgar que em nada se distinguia, mas quis o acaso que vivesse até muito tarde e se tornasse afinal um sábio.

 
 
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Dois anos e seiscentas e quarenta e seis pequenas histórias depois, quero festejar com os meus seis ou sete leitores do costume e com todos os que por aqui aparecem. Um grande abraço a todos.

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19.8.04
 

646

Durante muitos e muitos anos procurou sem resultado um mestre, até que afinal desistiu e se tornou ele mesmo um.

 
 

645

O maior problema que os problemas levantam é a própria definição do que é ou não um problema. Esta é assim a primeira questão que qualquer problema deve colocar a si mesmo para resolução. Uma questão de identidade, por assim dizer, pois se a resolução for por demais evidente ou fácil, nem chega a haver um verdadeiro problema, e se não tiver solução, agora ou nunca, também será outra coisa mas não um problema, talvez um enigma, quem sabe... Seja como for, uma coisa vos digo, não é fácil a vida de um problema, sempre cheia de dúvidas e inquietações.
 
18.8.04
 

644

Chegou uma altura da sua vida em que estava perante uma opção simples, ou ia ou ficava, mas ele não conseguia ir nem aguentava ficar, e tudo isto o preocupava e aborrecia de morte, deixando-o muito infeliz. Muito tempo passou até que ele percebeu com clareza que pior que um problema por resolver só um problema que nunca é resolvido, porque é da natureza dos problemas terem uma solução ou não serão afinal verdadeiros problemas.

 
17.8.04
 

643 (30 palavras, 142 toques)

Era uma vez um homem que toda a sua vida se preocupou por tudo e por nada. Não é de admirar que tenha recebido a morte de braços bem abertos.

 
16.8.04
 

642

O tempo em que os animais falavam passou há muito. Os homens, por seu lado, cada vez falam mais e dizem menos. Não tardará muito que todos afinal se calem.

 
 

641

Numa pequena aldeia vivia um homem que não se preocupava nem com o que lhe tinha acontecido nem com o que lhe poderia vir a acontecer. Uns diziam que ele era louco, outros diziam que era sábio, mas todos lhe invejavam a alegria de viver.
 
13.8.04
 

640

Quando a Morte chegou para o vir buscar ele contou-lhe uma história desesperada, que não podia ainda ir… que se o levasse agora… que esperasse mais um dia… e por aí adiante… Foi de tal forma convincente que a ludibriou, não só nesse dia, mas em muitos que se seguiram, continuando vivo durante muito, muito tempo. Narrar é estar vivo, dizia ele, e tinha toda a razão e mais alguma.
 
11.8.04
 

639 (< de 160 caracteres/toques)
A prupósito

O cardial emitou-se a si mesmo durante ânus a fiu. Não conseguiu no entanto sua iminência ivitar alguns erros, nem todos de hortografia.

 
 

(< de 160 caracteres/toques)

635

Bateu, pulsou, arquejou e palpitou a descompasso, mas nada de mal lhe aconteceu. Afinal era apenas um coração de papel e tinta a experimentar palavras.

636

O touro berrou, bufou, mugiu e urrou com insistência. Mas o toureiro não se foi embora.

637

Uniram os corpos num desejo intenso, e aquilo é que foi gemer, arrulhar, suspirar, turturinar… e sei lá que mais. Coisas de pombinhos.

638

Falou, palrou, taramelou, grazinou, e tudo isto durante horas sem parar, como fazem afinal os políticos, digo, os papagaios.

 
10.8.04
 

634

Sabia muito bem que nada seria como antes, se é que alguma vez chegara a ser, pois a realidade é na verdade muito pouca coisa, apenas o que existe de facto, tudo o mais é pura fantasia e tem de ser imaginada uma e outra vez.
 
 

633

Um certo dia, sem qualquer aviso, o dedo indicador da sua mão direita retesou-se e não mais deixou de fazer jus ao seu nome. A princípio isso fez-lhe alguma confusão: não só se tornava difícil utilizar a mão direita com aquele dedo constantemente espetado, como as pessoas com quem falava o olhavam sempre com indisfarçada ironia. Mas, verdade seja dita, com o tempo habituou-se por completo a essa situação, de tal forma que passou até a achar-se muito especial e a olhar todos os outros com desconfiança. E continuou igual a si mesmo quando o dedo finalmente voltou ao normal.

 
8.8.04
 

632 (< de 160 caracteres)

É impressionante o que se pode dizer com poucas palavras. Estas foram na verdade as suas derradeiras palavras. Mais exactamente, as suas últimas dez palavras
 
5.8.04
 

631

O discípulo pediu ao mestre que lhe explicasse o significado do Zen, ao que este lhe tomou a cabeça entre as mãos e o beijou na boca. E foi nesse exacto momento que o discípulo percebeu afinal que era gay.

 
 

630

Certo homem ficou um dia a pensar se poderia dizer algo realmente novo com as mesmas palavras de sempre, por mais que as combinasse das mais variadas formas e feitios. Mas a verdade é que não tinha meios para saber se o que dizia era novo ou velho, e bem podia ser que tudo o que dissesse não passasse afinal de involuntárias citações. Como este texto que escrevo como se fosse a primeira vez. Será?


 
4.8.04
 

629

Estava sentado, nada fazendo, e por ali foi ficando, consciente de si e de tudo o que se passava à sua volta. Muitos anos depois ainda ali estava, e todos os que frequentavam o jardim principal da cidade há muito se tinham habituado à sua presença tranquila. Quando morreu, foi tal a consternação que logo ali colocaram uma estátua sua em tamanho real e tão igual em todos os detalhes que enganava muita gente. Mas, por muito estranho que pareça, todos se queixavam que não já era a mesma coisa e, com o tempo, deixaram de lhe dar qualquer atenção.

 
3.8.04
 


628

Perguntou ao mestre o que devia fazer para alcançar a iluminação, e a resposta veio rápida e breve: “Nada”.

"Nada?", admirou-se ele.

"Nada", confirmou o mestre.

"Mas como se pode alcançar alguma coisa nada fazendo?", desabafou.

"Quem anda à chuva molha-se", respondeu então o mestre. E foi nesse exacto momento que o discípulo atingiu a iluminação.
 
 

627

Era uma vez um homem que se achava grande em muitos aspectos, até mesmo naquele em que a maioria dos homens gostaria de ser. E toda a sua vida acreditou que assim era, não tanto porque assim fosse, e não digo que não era, mas principalmente e acima de tudo porque nunca se comparou com quem quer que fosse a não ser com ele mesmo. Desnecessário será acrescentar que viveu feliz para todo o sempre.
 
2.8.04
 

626

Certo dia a Paciência e a Persistência, que raras vezes andam a par, começaram a discutir, e por mais calma que a primeira tenha ficado, o certo é que a segunda tanto teimou que a tirou completamente do sério. Esta história não tem moral alguma nem aponta para quaisquer conclusões, na verdade foi apenas assim que aconteceu e nada mais.

 
 

625

Um certo homem estava sentado, nada fazendo, quando pensou se seria possível chegar onde se quer sem se fazer por isso, um pouco como quem se deixa apenas ir, e nada mais. E foi nesse exacto momento que se levantou, sem aviso, e foi onde as suas pernas o levaram. Quando lá chegou, disse a si mesmo que estava afinal onde verdadeiramente queria estar. É que não é tanto onde queremos ir que é importante, mas sobretudo onde nos deixamos levar, pois acreditem ou não, o que deixamos de fazer é muitas vezes mais importante do que aquilo que fazemos.
 
1.8.04
 

624

Diz-se de certo mestre que nos últimos anos de vida meditava durante tanto tempo e tão profundamente que os seus discípulos só se aperceberam da sua morte muitas horas depois. Esta história foi contada por todo o lado e durante muito tempo, mas muitos nunca deixaram de a negar, afirmando que ele estava morto há anos mas ninguém tinha dado por isso. Seja como for, a verdade é que ele meditou todos os dias, e isso é que é importante.

 



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