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mil e uma pequenas histórias
25.6.04
 
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586

Ia um homem caminhando pelo parque, quando uma ema se acercou dele e lhe pediu com insistência:
— Por favor, conta-me uma história. Por favor.
O homem parou, surpreendido, e por alguns instantes nada disse.
— Bem que gostava de te agradar, mas há muitos e muitos anos que os homens deixaram de contar e de ouvir histórias. Diz-se mesmo que é um dom que está perdido para sempre, embora ninguém saiba verdadeiramente explicar o motivo.
A ema disse então:
— Mas tu já começaste, e vais muito, muito bem. Não pares agora e vais ver que consegues.
O homem assim fez, primeiro a medo, mas depois já empolgado. Falou durante muito tempo, e só quando terminou é que percebeu que à sua volta estavam agora muitos animais, e também homens mulheres e crianças que o aplaudiram longamente.
E foi esta a história que ele contou aos seus filhos quando chegou a casa.

 
24.6.04
 
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584

Deambulava um homem pelo jardim, pensativo, quando disse em voz alta a si mesmo:
— Sou aquilo que faço ou faço aquilo que sou? Quem me dera compreender! Quem me dera!
Uma formiga que por ali passava, carregando sem esforço aparente um peso muitas vezes superior ao seu, respondeu-lhe desta forma:
— Se fizeres aquilo que és, serás aquilo que fizeste. É tão simples como isto.
O homem olhou-a, espantado, e logo a esmagou displicentemente, com o pé direito, e afastou-se dali repetindo a pergunta inicial:
— Sou aquilo que faço ou faço aquilo que sou?
E desta vez não obteve qualquer resposta.

585

Ia um homem andando despreocupado, quando um lagarto se lhe atravessou à frente e quase o fazia trocar os pés e cair.
— Lagarto duma figa, vê se tomas atenção por onde andas!
Isto gritou o homem, bem alto, mas o lagarto nem sequer se virou para trás, e continuou ligeiro o seu caminho.
— Volta aqui! Volta aqui que te ensino a ter maneiras!
Isto gritou o homem, de novo, mas o lagarto já ia bem longe. E foi o melhor que fez, pois há muito que os lagartos aprenderam que nunca se deve parar para escutar as palavras dos homens.



 
23.6.04
 
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582

Estava uma árvore no mesmo lugar onde sempre estivera, à beira de uma estrada, quando um homem se acercou dela e lhe disse sem mais:
— As árvores são todas iguais, mesmo nas suas diferenças: tronco, folhas e uma imobilidade sempre verde. Como é que se pode viver assim?
A árvore pensou um pouco e respondeu-lhe:
— Estás na minha sombra, mas não a aprecias, e logo, logo, irás embora. Assim vive o homem, correndo de um lado para o outro e nunca estando contente com a vida que tem.
O homem não respondeu, parecendo só então sentir a sombra fresca e olorosa e, por breves instantes, a sua boca desenhou um sorriso de felicidade. Mas logo se foi embora dizendo a si mesmo que era tempo de se fazer à vida.

583

Estava um camaleão em cima de um arbusto, calmamente se confundindo com ele, quando um homem que por ali passava lhe disse:
— Que ridículo és, com os teus olhos desencontrados e a tua mania da imitação.
E riu-se muito, às gargalhadas.
O camaleão empalideceu um pouco, mas olhou-o nos olhos e disse-lhe:
— Eu não sou um camaleão, mas sim o camaleão, um animal perfeito na sua satisfação de si. Agora tu, és apenas um homem, e tenho a certeza que nem sabes em ti aquilo que te faz homem. Triste e trágica criatura és tu, condenado a nunca saberes realmente quem és.
O homem não disse nada, mas ficou muito tempo a pensar no que ouvira antes de seguir o seu caminho.
Há quem diga que se tornou um homem melhor.

 
21.6.04
 

581

Procurou o livro em todos os sebos e livrarias da cidade, mas a resposta foi sempre a mesma: é um livro excelente, sem dúvida, mas de momento não temos, se quiser deixar seus dados... Talvez o livro não queira ser encontrado, pensou o homem, mas essa idéia pareceu-lhe tão estúpida que logo a esqueceu. No entanto, não estava longe da verdade, não só o livro não queria como não podia ser encontrado. Não me perguntem porquê, mas é mesmo assim, acreditem, e saibam que muitos livros foram até escritos pelo simples facto que os seus autores nunca os conseguiram encontrar.
 
19.6.04
 

580.

Ela visitava-o todos os dias, nos seus sonhos, e fazia-o muito feliz, tão feliz como nunca alguma vez ele fora. Chegava num passo tão ligeiro que os pés nem pareciam tocar o chão, e logo o abraçava com intensa ternura, sussurrando-lhe ao ouvido que o amava muito. Cheirava a fruta madura e deixava-o louco de desejo... tão louco que ele a procurou por toda a parte e, verdade seja dita, acabou por a encontrar, o que nem mesmo ele acreditara verdadeiramente. Mas, desse momento em diante, ela deixou de aparecer nos seus sonhos, e nunca mais foi a mesma coisa.
 
16.6.04
 

579

Tentou recordar-se de quem era, mas não o conseguiu, e não é que não se lembrasse de todo de quem era, mas sim que se lembrava de mais, se assim se pode dizer, pois fora um e também muitos outros, até contraditórios, e afinal já não era, como se o fio que antes tudo unisse se tivesse quebrado e ele tivesse deixado de ser. Por momentos ficou a pensar no assunto, intrigado, mas a manhã já nascera. Não há nada que umas boas horas de sono não resolvam, disse ele, e adormeceu de imediato. Era um homem sensato e corajoso.
 
15.6.04
 

578 Buffet mais que completo

Primeiro sorveu deliciado um caldo espesso e aromático. Depois, degustou uma meia dúzia de espetinhos diversos. Em seguida, devorou, com lentidão, mais de quinhentos gramas de carnes e saladas variadas; tudo isto empurrado com cerveja, duas ou três garrafas geladinhas. No final, dois cafezinhos extra fortes, e uma generosa fatia de quindim. Palitou os dentes com esmero e, em cima de tudo isto, comeu a mulher, uma, outra e ainda outra vez. Depois, só depois, o enfarte, conclusivo e sem apelo. Era dono de um enorme apetite, verdade seja dita, mas também de uma reduzida esperteza. Paz à sua alma.

 
14.6.04
 

577 Um convite à leitura

Não sei o que dizem as palavras que escrevo, mas sei que elas sempre falam de mim. Não espero muito das palavras, pouco mais do que um testemunho do que sou, mas isso para mim é importante. Possa você rever-se nelas, e cumpriram sem dúvida a sua missão: revelar nossa humanidade. Desculpe-me ainda o modo como o afirmo, assim, sem mais nem menos, como fosse algo demasiado importante para ser dito. Acredite que escrevo sempre com um sorriso austero. Escrever diverte-me, sobretudo quando falo de coisas sérias. Espero que se passe o mesmo com você quando me ler, caro leitor.

 
 

576

A parte não é o todo, mas o todo está contido em cada uma das suas partes. Por isto é que um certo homem sábio tomava muito mais atenção aos pormenores do que ao conjunto, e sempre dizia que não devemos procurar o mais quando podemos alcançar o menos. Na verdade, o sabor do mar está contido numa única gota.
 
13.6.04
 

575 Mas

Subiu ao pico mais alto e olhou em redor, mas a linha do horizonte era o limite. Fechou então os olhos e conseguiu ver mais além, mas estava na hora de descer.
 
8.6.04
 

574

Muito tempo depois de ter partido, voltou ao lugar de onde nunca saíra. Era outro, e ainda o mesmo. E nestes paradoxos se consome a vida. Ficam as histórias.
 
3.6.04
 

573

Estava um homem deitado, adormecido, quando uma história o agarrou pelos cabelos, assim mesmo, sem mais nem menos, e o arrastou consigo, alheia aos seus gritos de espanto e de protesto. Ia a história quase a meio quando percebeu afinal que se enganara, e aquele homem não devia ali estar. Mas isso é outra história, e esta fica por aqui.
 
2.6.04
 

572 Repetição

Muitos anos passaram até que começou a escrever. E muitos mais anos passaram até que começou a ser lido.

 
 

571

O Paulo queria e não queria a Paula, ou não queria e queria, mas ainda a Paula, que a ordem dos factores é arbitrária mas o resultado sempre o mesmo. E se o amor é querer e a paixão ainda mais, pois nela não cabe o não querer, o que será este querer e não querer, que na verdade não quer nem deixa de querer? A verdade é que o Paulo não faz a mínima ideia. Tivesse ele uma resposta e eu teria afinal contado outra história que não esta que acabei de contar. Mas as histórias são como são!

 
1.6.04
 

570 De alguma maneira

Uma história tem de começar, de alguma maneira, assim como depois tem de continuar, de alguma maneira, e, ainda de alguma maneira, finalmente deve terminar. De alguma maneira, é isto que a ficção é: começar, continuar e terminar uma história.
 
 

569

Um homem perfeito é aquele que tem tudo o que lhe pertence ter. Ora sendo da natureza do homem ser imperfeito, é lógico concluir que a sua perfeição tem de conter sempre a sua imperfeição. Mas a lógica é uma batata, e cada um a cozinha ao seu gosto, o que não sendo mau em si, deixa muito a desejar quando se quer afirmar verdades universais. Confesso que gosto de batatas pequenas, cozidas e depois fritas em manteiga até ficaram bem louras. Não sou perfeito, ou talvez na verdade o seja, se a perfeição do homem for afinal ser imperfeito.
 



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... a ficção no seu mínimo...

Luís Ene

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