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mil e uma pequenas histórias
29.11.04
 

735

“A minha vida é preciosa, rara e significativa”, disse o aluno repetindo as palavras do mestre. Mas o que no mestre era pura sabedoria, no aluno era quase um eco. No entanto, o sorriso no rosto dos dois parecia-se em muito. Era afinal a mesma felicidade que o desenhava assim.

736 (SMS)

Estar calado é muitas vezes semelhante a falar. O silêncio enche-se de palavras e as palavras esvaziam-se em silêncio. [Isto foi o que ele disse a si mesmo.]

 
27.11.04
 

734

A Morte morreu um dia, para experimentar a vida, e durante algum tempo sentiu-se descontraída e feliz, esquecida de si própria. “Então isto é que é viver! Excelente!”, pensou; mas logo percebeu que aquela era afinal uma vida sem morte, e nesse preciso instante nasceu morta outra vez, descontraída e feliz, consciente de si própria.
 
 

733 (SMS)

Toda a sua vida obedeceu a um único e grandioso objectivo: viver. No fim, a Morte deu-lhe toda a razão. Afinal também ela leva a vida muito, muito a sério.
 
24.11.04
 

732

Um dia o livro desapareceu e ninguém o conseguia encontrar.
“Mas onde raio poderá estar?”
“Se calhar desapareceu de vez.”
“Isso é impossível”
“Mas já procurámos por todo o lado!”
A conversa prolongou-se durante muito tempo, exactamente até à página duzentos e doze, onde se percebeu afinal que estavam no único lugar onde não podiam encontrar o livro: dentro dele.
Quem diz livro diz ficção, e é nesse sentido que concordo com Jorge Luis Borges quando diz: «Se habla de la desaparición del libro; yo creo que es imposible». Esta citação começou esta história, é pois justo que a termine.
 
22.11.04
 

731 (SMS)

Um homem decorou por puro prazer um dos seus livros favoritos, mas o que era nele um hábito transformou-se afinal num vício. Passou a ler-se apenas a si mesmo.
 
 

730 Para o José Saramago

Chorou copiosamente sobre as páginas do livro, esborratando de tal forma o texto que não mais o conseguiu ler. A moral desta pequena história é esclarecedora: quando cozinhar por livro de receitas não se esqueça de cortar a cebola antes.
 
20.11.04
 

Para a Laurinha

728 (SMS)

Diz-se que o rei francês Luís XIV tomou banho apenas duas vezes na vida. Eu tomo em média dois banhos por dia. Serei um deus? Ou apenas um perdulário?

729

Filipe II de Portugal lavou pela primeira vez as pernas aos sete anos. Tinha pouco mais de dezoito quando lavou o torso. A cabeça, nunca a lavou. O primeiro banho completo tomou-o apenas depois de morto. Não admira pois que esta história cheire mal, muito mal mesmo, desde o princípio.
 
18.11.04
 

727 (SMS)

A Morte chamou-o, e ele foi. Inquieto, tenso, apreensivo. Mas foi. Era um homem excepcional, uma daquelas raras pessoas com a coragem de ter medo.
 
16.11.04
 

726 Fac-símile

Quase no fim o caminho dividiu-se em duas direcções, e não havia forma de saber qual era a certa e qual era a errada.
É por aqui, disse um, tenho a certeza.
Se vais por aí, disse o outro, então eu vou por aqui.
E assim fez, mas pouco tempo depois o caminho terminou num beco. Quando finalmente chegou já o outro estava sentado à sua espera com um sorriso fino nos olhos.
— Então, tinha ou não razão?
— Não foi a certeza que te trouxe aqui, foi o caminho!

[Não há certo nem errado, só há o aqui e agora.]

 
15.11.04
 

725 Para a Laura e para o Joaquim :)

Muitos saberão que existem várias espécies de pulgas, cada uma com seu temperamento e características próprias: a pulga do homem (a mais irritante), a pulga do gato e a do cão (as mais quezilentas), a do rato (a mais perigosa) e a da galinha (a mais parva). O que poucos sabem é que, apesar das suas diferenças, há muito tempo que todas as pulgas sonham conquistar o mundo, há tanto quanto procuram um rei que as una e conduza à vitória. Espero que nunca consigam, que só de pensar nisso fico com tanta comichão que nem consigo continuar a escrever.

 
12.11.04
 

723 (160 toques)

Toda a sua vida admirou um seixo que em criança trouxera de uma praia. Um dia morreu finalmente, e o seixo ficou triste. Pela primeira vez teve saudades do mar.

724

Um grânulo, um seixo, um calhau e um matacão estavam um dia no cimo de uma encosta a deitar contas à vida.
O que fazemos? — Dizia um.
Sei lá — dizia outro.
Grande merda — diziam todos.
Até que um teve uma ideia e gritou-a bem alto para que todos ouvissem: Let’s rock and roll!
Todos concordaram com entusiasmo.
E foi isso que aconteceu.
O grupo recebeu o nome Filhos de Wentworth. Estiveram muito tempo nos tops e tornaram-se ricos e famosos.

 
11.11.04
 

722 Ele e ela (ou do jogo do pingue-pongue)

Ele estava perdido de amores e seria capaz de qualquer loucura para a fazer sua.

Ela, nem tanto, mas exigiu-lhe em troca que se tornasse um homem sábio.

Ele retirou-se então do mundo, e com o tempo tornou-se um dos maiores pensadores do seu século.

Ela casou com um talhante que dizem as más-línguas lhe dava sovas monumentais, teve muitos meninos e poucas vezes foi feliz.

Nunca mais se voltaram a ver.

Ele dedicou-lhe todas as suas obras.

Ela nunca soube ler.

 
10.11.04
 


721 Ele era mesmo um pão, ninguém tinha dúvidas, mas a testa alta e o porte altivo distinguiam-no de todos os outros. E a verdade é que, talvez por isso, apesar de muito cobiçado e desejado, foi deixado para o fim. Quem o provou foi a Maria, que fazia o que lhe dava na cabeça, e não teve quaisquer problemas em cortar e comer a primeira fatia. Outras se lhe seguiram. Era o melhor pão alentejano que alguma vez haviam comido.
 
8.11.04
 

720 A certeza do cavaleiro errante

A sua busca durou muitos anos, mas finalmente encontrou o que procurava. Desde então, muitas vezes perdeu o que encontrara e muitas vezes o reencontrou, e isto só foi possível porque nunca deixou afinal de acreditar que tinha já encontrado o que procurava. Não sei se quem procura sempre encontra, e muitas vezes encontramos sem procurar, mas sei de fonte segura que uma vez encontrado podemos ter a certeza que esse algo existe, e existindo pode ser encontrado de novo. Foi isto em que acreditou, foi isto o que lhe aconteceu. E a mim também.
 
7.11.04
 

719

“Estou sem palavras”, disse ele.
“Não são necessárias”, disse ela.
E ficaram os dois em silêncio ouvindo-se um ao outro.
O que eles não sabiam é que há muito, muito tempo certas palavras aprenderam a dizer-se a si mesmas, e muitas e muitas vezes se fizeram ouvir, assustando de morte as pessoas que as escutavam . Mas o que a princípio foi apenas uma inebriante descoberta deixou-as afinal tão cheias de si que nunca mais ninguém as conseguiu dizer a não ser elas.
E isto diz quase tudo. O que fica por explicar não carece de explicação: é mesmo assim.

 
5.11.04
 

718 Certo dia, uma cebola sentiu o irresistível desejo de conhecer o verdadeiro eu, aquilo que a fazia afinal ser quem era muito para além do que aparentava ser. Concentrou-se então, apelou a todas as suas forças e, camada a camada, foi-se despindo de si até que nada mais havia para revelar. Mas o seu verdadeiro fim só teve lugar um pouco mais tarde, quando um porco a viu e a comeu com sofreguidão, até que nada restou dela, a não ser uma ténue e agradável memória. A moral desta pequena história poderia ser “Mais vale ser o que se parece”.
 
4.11.04
 

717 Para a Silvia Chueire Somos todos ficção, escreveu, uma mistura fina de desejo e de espanto com que fabricamos os sonhos e a realidade a que chamamos vida. Só assim se explica que apenas possamos dizer quem somos narrando o que nunca fomos e o que nunca seremos. Só assim se percebe que seja muito mais importante aquilo que nós mesmo julgamos ser do que aquilo que afinal somos. Agora que penso nisso, talvez não sejamos todos ficção, mas de certeza que só nela existimos. Nesta altura o escritor bocejou, o seu rosto abriu-se num esgar, contou as palavras, e esperou que fossem cem.

 
3.11.04
 

716

Ele era, e muito se esforçava por ser, mas a verdade é que, fosse como fosse, ele sempre seria o que quer fosse que era. E foi neste jogo de palavras, divertido e fútil, que fui de novo visitado por uma convicção antiga. As palavras só nos podem levar até determinado ponto. A partir daí é necessário avançar em silêncio.

 
2.11.04
 

715

“O que não tem solução, solucionado está”, disse ele a si mesmo com redobrada convicção, e desta máxima retirou um verdadeiro princípio de vida. Não deixou de ter problemas, é certo, mas nunca mais ficou algum por resolver. E foi desta forma simples que a vida passou afinal a ser para ele um problema que valia a pena ser vivido.
 
1.11.04
 

714

Não mudei - disse ela com firmeza -, sou a mesma mulher de então.
Ele engoliu em seco e ficou em silêncio. Bem que gostaria que não acabasse assim, mas concordava com ela a cem por cento. Era agora um outro homem.
 
 

713

Amaram-se durante dias a fio, ao ponto em que os corpos já não se distinguiam e nenhuma palavra de amor fazia já sentido. Depois ela mandou-o embora, e ele foi, sem mais. Ambos sabiam que ele era um amante descartável.
 



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... a ficção no seu mínimo...

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