mil e uma pequenas histórias
901
Esta manhã, na baixa, uma mulher jovem percorreu mais de 50 metros com um sorriso nos lábios. Ao descreverem o sucedido, todas as testemunhas sorriram também.
900
Um homem de 45 anos ganhou ontem pela primeira vez coragem para dizer à mulher tudo o que calara até então. E foi tal a comoção que não conseguiu articular uma única palavra.
899
Foi hoje de manhã detida e presente ao juiz de instrução criminal, aguardando decisão, uma mulher que há muito oferecia o seu corpo a quem o desejasse, com a condição única de guardar a sua alma só para si.
898
O homem desaparecido no último fim-de-semana sem deixar rasto não foi ainda encontrado, mas deu a conhecer dois pedidos. A todos os que o procuram, pede que abandonem as buscas. A todos os que esperam por si, pede que desistam.
897
Um homem e uma mulher foram ontem felizes por breves instantes. Segundo referiram, há muito que tal não lhes acontecia, e não conseguem encontrar qualquer explicação. Esperam no entanto que se repita nos próximos dias.
896
Ele contou-lhe uma história, e ela, para sua surpresa, contou-a de novo, criando uma nova história que se tornou a história deles. E ainda hoje a vivem, pois quando o fim chega, eis que a contam de novo, e é uma sempre uma história nova.
895
Encontravam-se todas as primeiras quintas-feiras do mês, das 18 às 19 horas, sempre no mesmo quarto de hotel. Umas vezes era ele que lia, outras ela, mas sempre em voz alta, clara e pausada, para que o deleite fosse mútuo e genuíno. Esta situação durou ainda bastante tempo, até que o romance chegou ao fim.
894
A sua vida não fazia qualquer sentido. Na verdade, nunca fizera. Mas isso jamais o impedira de viver com satisfação. E não é assim que deve ser, caro leitor?
893
Desejou-a e interrogou-se porquê. Não encontrou qualquer resposta, mas continuou a desejá-la.
892
Aprendeu a amar com o primeiro amor, mas de cada vez que amou teve de aprender tudo de novo. É assim o amor, uma aprendizagem para toda a vida.
891
Gostava dela, gostava muito, amava-a mesmo, e gostava de a amar; depois passou a odiá-la, é verdade, e deixou de gostar dela, mas ainda hoje gosta de a odiar.
890
Uma mulher beijou um sapo e, para sua grande alegria, viu-se imediatamente transformada numa princesa. Sim, ela mesma, que o sapo continuou sapo, nem ele queria outra coisa. [A cada um segundo as suas necessidades.]
889
Estava perdido, completamente perdido. Nada podia fazer a não ser começar de novo.
888
Ele amava-a. Ela amava-o. Foram felizes, mas não para sempre. Se querem mesmo saber, por muito menos tempo do que imaginaram.
887
No tempo em que as palavras falavam os homens ouviam. Foi só quando elas se calaram que eles começaram a falar. Talvez essa seja a razão porque a maior parte das vezes os homens falam tanto e dizem tão pouco.
886
Degolou a namorada e atirou-se para debaixo de um comboio. Apaixonara-se pela morte.
885.
Um homem disse:
Nada tenho a dizer.
Falou demais.
884 E=mc2
Carlos nasceu de olhos muito abertos, dizia sempre o seu pai, para de alguma forma explicar a sua infinita curiosidade e ao mesmo tempo negar o seu ar aparvalhado. Porque se Carlos era inteligente a verdade é que não o parecia, e num primeiro contacto muitos concluíam mesmo que ele era fraco das ideias. Conhecendo-o melhor não se podia duvidar do seu espírito, mas era só fitar aqueles olhos esbugalhados e logo se mudava de opinião. Foi por isso que passou a andar de óculos escuros em todas as ocasiões, o que lhe conferiu no final um ar suficientemente curioso.
883 O livro, o leitor e a leitura
Agarrou o livro com cuidado. Tinham-lhe dito que era um livro excelente, um verdadeiro clássico. Olhou a capa, a contracapa, sopesou-o com gravidade, e só depois o abriu e começou a ler. Leu com prazer, com profundidade, levantando aqui e ali os olhos das páginas por longos períodos, como era seu hábito. Um excelente leitor, concluiu o livro poucas páginas passadas, e sentiu-se como novo.
879
Dizia que contava histórias para se manter vivo, mas quando morreu não deixou de as contar. Agora tenho ainda mais razões para o fazer, explicava a quem o questionava.
880
Cumpriu uma pena de prisão de onze anos por um homicídio que não cometera. Após a libertação cometeu vários homicídios, mas nunca foi condenado. Tinha tido muito tempo para pensar.
881
É demasiado tarde para viveres, disseram-lhe. E estar morto não era a única razão.
882
Antes de morrer queria dizer que.
878
A exibicionista iludiu a segurança e apresentou o peito nu ao primeiro ministro. Este nem hesitou, tomou um dos seios nas mãos e meteu-o na boca com prazer. O psiquiatra bem o tinha avisado que não ultrapassara a fase oral!
877
Estava sentado, a escrever, quando se sentiu tolhido pelas palavras. Então gritou bem alto, e retomou a escrita com as palavras que ficaram.
876 [Check list]
- Preparar um jantar frio.
- Abrir um tinto velho.
- Colocar as argolas que ele tanto gosta.
- Dizer-lhe que está tudo acabado.
875 [Check list]
- Colocar uma música suave.
- Oferecer-lhe uma bebida.
- Tirar toda a roupa a começar pelos sapatos.
- Esperar que ele faça o primeiro movimento.
874 [Check list]
- Tirar o telefone do gancho.
- Fechar portas e janelas.
- Abrir todos os bicos do fogão.
- Esperar a morte.
873 Quarenta palavras de Zen
Libertou-se de tudo e pôs-se caminho. Não aguentou nem dez quilómetros. Ainda pensou em voltar para trás, mas já não era possível regressar. Ficou por ali mesmo, sentado à beira da estrada, tranquilo, nada fazendo. E de lá nunca saiu.
872
Adorava livros. O que é de louvar. O pior foi quando se tornou completamente dependentes deles e não ia a lado nenhum sem a sua biblioteca. O que continua a ser de louvar, mas também bastante inconveniente.
871
Começou por falar menos e escutar mais. No final, deixou mesmo de falar. Limitava-se a abrir muito os olhos e abanar a cabeça, soltando aqui e ali pequenas interjeições sem sentido. Ninguém deu por isso, achavam-no uma pessoa muito inteligente, tão inteligente que os fazia responder às suas próprias perguntas.
870
Sentiu-se atraído por ela, mas cedo percebeu que nada tinham em comum, nem mesmo a atracção.
869
Falava, falava, falava… mas ninguém o ouvia. Ouvia, ouvia, ouvia… mas ninguém falava.
868
Encontrou sempre o homem certo no tempo errado. Não é assim de admirar que chegado o tempo certo só encontrasse homens errados. Uma mera questão de harmonia.
867
“Quero manteiga com pão, se faz favor.”
“Manteiga com pão?”
“Sim, isso mesmo.”
“Não será antes pão com manteiga?”
“Pedi manteiga com pão, não pão com manteiga, mas na verdade tanto me faz.”
“Mais alguma coisa?”
“Quero também leite com café.”
866
Era um escritor desigual: faltava-lhe equilíbrio. Não admira que caísse tantas vezes.
865
Vamos acabar, disse ela, e ele concordou, mas ficou a pensar que não se acaba o que mal ainda começou, apenas se desiste de começar.
864
Não sou mulher de refogados, disse ela, e ele olhou-a com aprovação. Foi nesse momento que se apaixonaram, e ainda hoje mantêm uma alimentação saudável.
863
Uma pequena história conta-se do princípio ao fim, de supetão, com todos os meios que forem necessários. Aliás, tudo pode ser utilizado e reciclado. Uma certa ambiguidade semântica é essencial. O final, ao contrário deste, deve ser inesperado ou enigmático.