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mil e uma pequenas histórias
30.6.05
 

33 (968)

A um aluno que perturbava as aulas com questionamentos fúteis e constantes, mestre Atemóia perguntou um dia se já experimentara falar apenas quando tinha alguma coisa para dizer. E quando este respondeu que não compreendia a pergunta, exclamou:
Exactamente o que eu suspeitava.
Durante muito tempo o aluno manteve-se calado, mas a partir desse momento progrediu bastante nos estudos, e veio a tornar-se um dos mestres mais novos de sempre.
 
 

34 (967)

Um aluno perguntou um dia a mestre Atemóia por que todos os mestres sorriam sem parar. Mestre Atemóia sorriu longamente e disse:
E que outra coisa melhor poderíamos fazer?
Foi nesse exacto momento que o estudante atingiu a iluminação.
 
 

35 (966)

O que é o amor? - perguntaram a mestre Atemóia, e ele respondeu: O amor é, seja qual for a resposta sobre a sua natureza. [Há respostas que têm de ser vividas.]
 
29.6.05
 

36 (965)

Perguntavam às vezes a Simplício por que contava histórias, e ele respondia sempre que era um contador de histórias e contar histórias era o que fazia. Mas alguns não ficavam satisfeitos com a resposta, e insistiam que ele respondesse à pergunta. Simplício retorquia então:
Esta é a história da minha vida, permitem-me que a conte como eu quiser?
Finalmente calavam-se.
 
 

37 (964)

Simplício encontrou uma vez um homem que não sabia quem era, e contou-lhe uma história enigmática que dizia que tudo o que existe é o presente. O homem ouviu com muita atenção e no final exclamou: Já sei quem sou, sou o homem que não sabia quem era! E sorriu o mais belo dos sorrisos.
 
28.6.05
 

38 (963)

A uma mulher que chorava um amor não correspondido, Simplício contou uma história muito comovente que falava do amor como um milagre. A mulher ouviu-o com atenção, sem nunca deixar de chorar, e já a história há muito acabara ainda ela chorava, mas as suas lágrimas eram agora de alegria.
 
 

39 (962)

Um dia conduziram Simplício junto de um homem ainda novo, que desistira há muito de viver, e pediram-lhe para contar uma história que o ajudasse. Simplício sentou-se então junto à sua cama, e começou a contar uma história muito bela sobre a alegria de viver. Pouco a pouco, o homem foi ganhando cores, e os seus olhos recuperaram o brilho de outrora. Foi a partir daí que o poder curativo das suas histórias se tornou uma lenda, e a sua fama de curandeiro se espalhou pelo mundo. Simplício, por seu lado, nunca deixou de considerar-se um simples contador de histórias.
 
 
40 (961)

Mudaram-se um ao outro e guardaram em si essas mudanças. Não sei se isto é amor, mas gosto de pensar que sim.
 
 

41 (960)

Estava a voltar mas sentia-se como se nunca tivesse ido. E se nunca tinha ido, como podia estar a voltar? O paradoxo ocupou-o até chegar ao seu destino.
 
24.6.05
 

42 (959)

Um dia, quando um estudante entrava pela terceira vez consecutiva a meio da aula de meditação, perturbando a classe, mestre Atemóia interpelou-o com rispidez:
Então isto é que são horas de chegar? Não sabe fazer melhor?
O aluno fitou-o, desafiador, e disse: Desculpe que lhe pergunte, mas perdeu a paciência? É que nunca o vi assim!
Mestre Atemóia devolveu-lhe o olhar e respondeu com exemplar severidade:
Esperei tranquilamente por ti, agora chegaste e eu estou zangado, o que tem isso a ver com a paciência?
Desde essa altura o estudante passou a chegar sempre a horas, ou então não aparecia.
 
23.6.05
 

44 (957)

Um estudante dirigiu-se um dia a mestre Atemóia e questionou-o:
“Umas vezes o tempo passa demasiado depressa e outras está parado. Isso confunde-me. O que devo fazer para evitar essa sensação?”
Perante o seu silêncio, repetiu a pergunta, mas ele continuou a não lhe responder. Quando já não esperava uma resposta, mestre Atemóia falou, ao mesmo tempo que se afastava:
“O tempo é apenas o modo como reconhecemos e descrevemos o movimento."
O aluno ficou tão surpreendido que mais tarde quis reproduzir as suas palavras mas não conseguiu.

[Se esta história lhe pareceu breve, leia-a tantas vezes quantas lhe apetecer.]

43 (958)

Certa vez mestre Atemóia atravessou o pátio durante a meditação da tarde, e trepou ligeiro até ao topo da árvore mais alta, deixando todos os monges muito agitados e preocupados. Algum tempo depois desceu, e logo muitos lhe perguntaram porque tinha subido à árvore. Ele olhou-os sem pressa e disse: “E de que outra forma poderia eu ter descido?” Ninguém lhe respondeu. Na verdade, metade dos monges ameaçou chegar-lhe a roupa ao pelo, e a outra metade apressou-se a defendê-lo. Quando a confusão terminou e o procuraram para lhe fazer mais perguntas, já ele se tinha ido embora há muito.
 
 

45 (956)

A um estudante que se queixava sempre de que nunca obtinha quaisquer resultados com os seus estudos, mestre Atemóia respondeu um dia que ele desistia com facilidade, ao que ele lhe retorquiu, mal contendo a sua raiva:
Só desisto quando não consigo ir mais longe. Apenas isso. Só desisto quando não consigo ir mais longe!
O mestre sorriu e disse-lhe então na sua estranha voz de pássaro:
É isso mesmo o que eu chamo desistir com facilidade.
Foi nesse exacto momento que o estudante atingiu a iluminação.

[Caro leitor, se não percebeu, volte a ler. Tantas vezes quantas forem precisas.]
 
 

46 (955)

Mestre Atemóia vivia há muito afastado do mundo, meditando e cuidando do pequeno jardim situado nas traseiras da sua casa. Nunca saía dali e muito poucos o procuravam. Um estudante que fez o longo caminho até ali só para estar com ele, perguntou-lhe como podia ele viver assim, sem conhecer nova pessoas e novas paisagens, ao que ele lhe respondeu:
“Poucos meses depois de aqui chegar, achei que já conhecia tudo, e quis partir, mas pensei melhor e decidi ficar. Desde então tenho aprendido um pouco mais todos os dias.”
O estudante guiou toda a sua vida por essa resposta.
 
22.6.05
 

post mortem

50 (951)

Fez sempre questão de fazer a barba e trocar de camisa todos os dias, mesmo depois de morto.

49 (952)

Acreditou toda a sua vida no amor e nunca deixou de o procurar. Foi um indivíduo exageradamente amoroso.

48 (953)

Foi tão agarrado à vida que morreu aos poucos, muito aos poucos, vítima de uma prolongada doença degenerativa.

47 (954)

Todos o ignoraram, menos a morte, que não deixou de o levar consigo quando a sua hora chegou.
 
 

A verdade em quinze palavras vezes quatro

54 (947)

Ele sabia que só a verdade liberta: tinha acontecido com ele e nunca lhe perdoara.

53 (948)

Nunca quis olhar a verdade de frente: preferia a mentira. Lá teria as suas razões.

52 (949)

Só a verdade liberta, disse a si mesmo, mas esqueceu-se que primeiro é preciso encontrá-la.

51 (950)

A Verdade, completa e absoluta, quebrou-se em mil e um pedaços que ninguém consegue colar.
 
21.6.05
 

55 (946)

Saiu de casa mas esqueceu-se de dizer à mulher. Ela só deu por isso anos depois.
 
 

56 (945)

Estava convencida que ele ouvia cada vez menos, e falou-lhe em voz alta, tão alta que ele, surpreendido, nem respondeu. Então ela insistiu, gritando, só que desta vez ele assustou-se e fugiu, convencido que ela enlouquecera de vez.
 
 

57 (944)

Ele tinha uma visão distorcida e negativa dos homens e das mulheres e dos relacionamentos entre eles, e não havia óculos que o ajudassem. Felizmente pôde ser operado e passou a ver tudo cor-de-rosa, mesmo aquilo que não o era.
 
 

58 (943)

A raposa olhou-se na fotografia e não gostou mesmo nada de se ver. Está desfocada, disse.
 
20.6.05
 

59 (942)

Toda a sua vida tentou entender as mulheres, até perceber que na base da sua persistência estava afinal uma verdadeira incapacidade.
 
 

60 (941)

Repetitivo — Sentia sempre uma enorme vontade de falar, mas sabia que tinha muito pouco para dizer, e calava-se. Não queria ser repetitivo.
 
19.6.05
 


62 (939)

Ela falou durante muito tempo mas ele nada percebeu, e o simples facto de falarem diferentes línguas talvez não tenha sido o maior obstáculo.

61 (940)

Depois de toda a sua vida ter esperado por grandes mudanças, dedicou-se a mudar pequenas coisas em si, e conseguiu finalmente o que sempre desejara.
 
18.6.05
 

64 (937)

Um homem surpreendeu-se ao constatar que o pássaro caído no chão estava morto mas o amarelo da sua plumagem continuava vivo.

63 (938)

A PJ de Faro deteve ontem no Algarve um homem de 47 anos, acusado de disfunção eréctil. Segundo foi apurado, o homem há anos que não tinha uma erecção, recusando qualquer tipo de ajuda médica ou medicamentosa.
 
17.6.05
 

65 (936)

Fez-se escritor tarde de mais: nunca seria tão novo quanto a sua escrita.
 
 

66 (935)

Há muito que procurava um príncipe encantado, há tanto que já não acreditava que existisse algum. Estava completamente enganada: os príncipes eram muitos, ela é que não se deixava encantar.
 
 

67 (934)

Entregava-se sempre de corpo e alma. Quando os amigos a criticavam, respondia que caso se entregue o corpo e se resguarde a alma o sexo só pode ser desalmado.
 
 

68 (933)

Fode-me, disse ela.
Estou fodido, pensou ele.
 
 

69 (932)

Acreditava que tinha tudo controlado, mas, na verdade, a única coisa sobre a qual tinha efectivo controlo, era essa descontrolada sensação de que tudo controlava.
 
16.6.05
 

70 (931)

Estou disponível, mas não quero manter um relacionamento, disse-lhe ela. Estou aqui, mas podia estar noutro lugar, pensou ele.
 
 

71 (930)

Por momentos acreditou que uma simples palavra poderia tudo mudar, mas escolheu o silêncio, nem soube bem se por medo que afinal não acontecesse o que desejava, ou exactamente o contrário.
 
 

72 (929)

Um homem foi ao fundo uma vez, outra, e outra ainda, mas não morreu. A questão que lhes quero colocar, caros leitores, não é quantas vezes mais pode ele ir ao fundo e ficar vivo, mas sim quanto tempo poderá ele ainda estar vivo sem ir de novo ao fundo.
 
 

73 (928)

Quando morrer quero estar vivo, dizia ele, que era um homem coerente, e toda a sua vida quis estar morto.
 
15.6.05
 

Para mil histórias, atingidas as novecentas e vinte cinco, faltam agora (apenas) setenta e cinco, o que me dá vontade de iniciar uma contagem decrescente, mantendo ao mesmo tempo a contagem inicial.

75 (926)

Ontem, no centro da cidade, um jovem especialmente frágil tropeçou e caiu, quebrando-se em mil pedaços.

74 (927)

A minha mulher é excepcionalmente quente, e eu gosto de acender os cigarros no seu corpo, declarou ontem o homem detido por maus-tratos conjugais.
 
14.6.05
 

925

Ainda hoje, tanto tempo passado, sente a falta dela, só não sabe se do seu corpo ou da sua alma, que nunca foi capaz de os distinguir.
 
 

924

às vezes uma história começar e ficar-se pelo princípio. Acontece
 
 

923

De repente, pela primeira vez, sentiu-se liberto, sem passado nem futuro, suspenso entre parênteses, mas só durou um instante. Daí para a frente, muitas vezes voltou a esse lugar, mas sempre de forma inesperada, e sempre por muito pouco tempo.
 
13.6.05
 

922

Há muito que mestre Acabado vivia afastado do mundo, mas bastantes o procuravam com frequência para lhe contarem os seus problemas. Ele a todos ouvia com atenção, e às vezes pedia alguns esclarecimentos, mas nunca dava qualquer conselho, o que não impediu que continuassem a visitá-lo. Um dia, finalmente, morreu, mas nem assim o número de visitantes baixou.
 
12.6.05
 

920

O amor não se liga e desliga, ele é vida, e só acaba com a morte. É assim que o amor nasce, morre, e às vezes até ressuscita. Isto mesmo disse-lhe ele noite dentro, a mão no interruptor da sala, ora acendendo ora apagando o candeeiro de tecto, como se fosse apenas mais um argumento.

921

Fingiu tão bem de morto que morreu afinal.
 
 

919

Quando deu por si estava completamante apaixonado, o que não foi surpresa, pois tanto ele se empenhou na sedução que era inevitável ser por ela seduzido.
 
11.6.05
 

917

Esperou por ela várias horas, até perceber que estava no lugar errado: ela nunca viria.

918

Uma história vai onde a contarmos; agora se vai onde queremos que vá ou onde ela própria quer ir, isso já é outra história.
 
9.6.05
 

916

Ao fim da tarde, sentou-se num bar a bebericar um gin tónico, e a vida fazia todo o sentido, como nas histórias que há muito se habituara a contar.
 
8.6.05
 

915

Um homem atravessou a rua na passadeira. Quando iniciou a travessia ainda era amado e quando terminou já não o era. O seu passo, no entanto, em nada se alterou.
 
7.6.05
 

914

Na rua das lojas, onde não passam carros, uma flor caída foi pisada vezes sem conta, até quase perder a forma. O seu aroma, no entanto, ainda é perceptível a quem sobre ela se debruçar.
 
6.6.05
 

913

Um homem grisalho sentiu-se hoje à tarde tão feliz que começou a dançar entre as mesas de uma esplanada. O polícia chamado ao local deu-lhe ordem de prisão enquanto valsavam.
 
 

912

Hoje, cerca das 12:30, no pico do calor, uma brisa não identificada percorreu toda a baixa de Faro, para gáudio dos transeuntes. Alguns chegaram mesmo a aplaudir a sua passagem.
 
5.6.05
 

911

Ontem, ao fim da tarde de um dia quente, um homem e uma mulher trocaram por instantes um só olhar, profundo e refrescante, mas ninguém deu por isso, nem mesmo eles.
 
4.6.05
 

910

A morte sorriu-lhe um dia e ele sorriu-lhe de volta. Hoje são amantes e vivem felizes.
 
3.6.05
 

909

Bom dia tristeza, disse ele, deixa-me apresentar-te a felicidade; e todo o dia exibiu um sorriso ora triste ora feliz.
 
 

908

Vivia paralisado pelo medo, mas com o tempo começou a ter medo até de ter medo, e esse sentimento foi-lhe de tal modo insuportável que lhe deu finalmente a coragem que precisava para se libertar.
 
 

907

Quando ficaram a sós, ele passou-lhe de leve a mão pelo cabelo, olhou-a nos olhos e sorriu. Foi então que ela lhe disse, palavra a palavra, o que ele há muito desejava ouvir. Só nessa altura ele percebeu que estava a sonhar, mas nem por isso se sentiu menos feliz.
 
 

906

Amava como respirava: a maior parte do tempo quase sem dar por isso, e algumas vezes com extrema dificuldade.
 
2.6.05
 

904

Ontem, ao fim do dia, um homem de 35 anos foi de um lado ao outro do nada sem que lhe acontecesse coisa alguma.

905

Um homem desesperado escreveu uma história maravilhosa com uma porta aberta. Depois entrou na história e fechou a porta atrás dele.
 
1.6.05
 

903

Os ratos fizeram uma festa de arromba. O único problema foi o gato ter voltado mais cedo.
 
 

902

Foi encontrado um amor não correspondido, em bom estado, entrega-se a quem provar pertencer-lhe.
 



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