mil e uma pequenas histórias
568
Aconteceu a um homem perder a memória de quem fora, mas nem por isso deixou de ser quem era. E ainda que desconhecesse quem fora, ou talvez nunca o tivesse realmente sabido, a verdade é que todos o continuavam a reconhecer naquilo que fazia. Notaram que passou a falar muito menos e estava mais sereno, mas no essencial não mudara. Ele, por seu lado, nem tentou saber quem fora e limitou-se a ser quem era.
567
Viveu em tempos um homem que tinha medo de tudo, e ainda mais de viver. Mas longos anos passaram até que finalmente morreu, e essa foi a sensação mais parecida com a alegria de viver que ele alguma vez experimentou.
566
João não era um homem sensato, aliás, era tudo menos um homem sensato, mas um dia, por mais estranho que vos pareça, começou a agir com sensatez, e nunca mais o deixou de fazer. E assim nasceu mais um mito.
565
Um homem saiu um dia de si e olhou-se durante muito, muito tempo. Mas foi só quando regressou finalmente a si que recuperou a sua vida.
564
Era um homem muito sério e muito determinado que há muito procurava um sentido para a vida, mas por mais que perguntasse a si mesmo o que era importante, o que era realmente importante, a resposta que no final lhe restava era sempre a mesma: o mais importante é viver.
Cara e coroa
562
Como não a compreendia, pediu-lhe os olhos para ver o mundo, convencido que estava aí a solução. Perturbou-se de tal forma que nunca mais a quis ver.
563
Estava convencido que a conhecia como ninguém, mas um dia olhou o mundo com os seus olhos e ficou cego para sempre.
561
Num instante tudo pode acontecer. Mesmo que nada seja. E não é que o tudo e o nada sejam a mesma coisa. O tudo é um nada maior.
560
Quando se fala por falar melhor seria não falar... As palavras são instrumentos de precisão de que nos servimos quando há algo para dizer... As palavras têm ténues significações que se confundem e desvanecem quando nada queremos dizer com elas... [Isto mesmo pensou um homem, num longo silêncio pontuado por palavras não ditas. E não pensou por pensar.]
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559
Não se recordava de coisa alguma; toda a sua vida se apagara. Não precisou de pensar muito para concluir que estava morto.
Novas histórias & morais
553
Era uma pessoa muito diferente, mas só fazia amor com iguais. Estranho, não é?
554
Os sapos não se transformam em príncipes, apenas voltam a sê-lo. Cada vez menos!
555
Nasceu. Cresceu. Fodeu muito. Morreu.
556
O príncipe acordou-a com um beijo. E isso foi apenas o começo.
557
Casaram e foram felizes para sempre, o que só foi possível graças ao divórcio.
558
Esperou um eternidade que a porta se abrisse, o que acabou por acontecer, mas não para ele.
552
Ela sentia desde pequena uma enorme vontade de não existir, o que a deixava triste e inquieta, mas o que ela temia ser um doentio apelo de dissolução era afinal um saudável anseio de plenitude.
551
Sou um filho da puta com muita sorte, disse o homem com um sorriso largo. E era verdade, tão verdade como ser um pobre diabo. E viva a inseparável dualidade!
550
Merda, grande merda, disse o velho da montanha olhando com desconsolo o pé direito. De que me serve afinal toda a sabedoria acumulada, acrescentou pouco depois, se todos os dias alguém vem defecar à porta da minha gruta? Eis uma pergunta a que o leitor pode responder! Esteja à vontade.
549. Uma história enganosa
O polícia disse-lhe, de chofre, sem mais cuidados, Minha Senhora, o seu filho está morto, foi assassinado no dia 13 de Maio. Mas não estava, tinha sido um engano. A senhora é que não o chegou a saber, coitadinha, caiu logo no chão e nunca mais se levantou. Dias depois o polícia foi assassinado, mas não pelo filho da senhora, como o leitor poderia pensar. Na verdade, foi um engano. Foi tudo um engano pegado.
548. História de amor
Conheceram-se. Apaixonaram-se. Casaram-se (ou não!). Queriam ser felizes para sempre e às vezes foram-no.
547
Uma mulher de voz fina e um homem de voz grossa discutiram horas a fio. Quando ficou sem argumentos, o homem levantou a mão para bater na mulher, mas ela reagiu de imediato e colocou-o a dormir num abrir e fechar de olhos. [Caro leitor, uma pergunta para si: Afinal quem é que tinha razão?]
A vida não vale nada mas nada vale mais que a vida
545
Estar vivo não é o contrário de estar morto; estar vivo é tudo e estar morto é nada. Isto pensou um homem que voltou à vida quando já o haviam dado como morto. Assim pensou então, e nunca mais assim deixou de pensar. E até morrer sentiu-se sempre maravilhosamente vivo.
546
Sobreviveu ao espectacular acidente rodoviário sem quaisquer sequelas a não ser a completa perda de memória. Durante muitos anos reconstruiu com afinco o seu passado, e um dia chegou em que se recordou finalmente de tudo o que o havia levado ao suicídio. Mas já não era o mesmo homem.
544
Um conto sempre conta duas histórias, tal e qual uma moeda que é rolada entre os dedos com destreza. A isto se chama prestidigitação.
543
Tinha de fazer uma importante escolha e todo o dia deu voltas à cabeça, mas as circunstâncias alteraram-se e decidiram por ele. Na verdade, talvez tenha sido essa a sua decisão. Ao leitor, como é habitual, cabe a última palavra.
542
Em menos de cinco minutos escreveu uma pequena história bela como um teorema. Empregou nessa acção toda a sua experiência de vida.
541
Durante horas sem fim tentei escrever uma pequena história sobre as dificuldades da narrativa. De todo esse imenso esforço dá conta este registo lapidar.
540
Em nada se sentia diferente das outras, e a verdade é que sempre balia em coro e não se afastava do rebanho. Mas a cor faz a ovelha, e da fama nunca se livrou.
539
Era no espaço exíguo do seu quarto que ele se sentia no melhor dos mundos e experimentava a maior das liberdades. Saía apenas para ter o prazer robustecido do regresso.
538 Um homem muito determinado
Um homem estava há muito tempo à espera que alguma coisa acontecesse. Mas não era qualquer coisa. Era algo que lhe mudasse a vida de uma forma definitiva e irreversível. E a verdade é que chegou um dia em que tal aconteceu e o seu desejo de mudança se realizou finalmente. A sua vida mudou de cima a baixo e nunca mais foi igual. Infelizmente, ele continuou a ser quem era, tal e qual, sem tirar nem pôr, e em nada mudou. Continua, ainda e sempre, à espera que alguma coisa aconteça e que a sua vida mude por completo.
Mensagens de amor e de rompimento II
536. Fui ao médico e estou de perfeita saúde. No entanto só penso em ti dia e noite. E se não é doença então só pode ser amor.
537. Destrui as tuas fotografias. Apaguei-te da memória. Não te quero ver mais, nunca mais. Eu seja ceguinho se volto atrás na minha decisão.
Mensagens de amor e de rompimento I
534. Não sei explicar o que é o amor, mas sei o que é, e sobre isso não tenho quaisquer dúvidas ou hesitações. É o que sinto por ti. E mais nada preciso saber.
535. Não deixei de te amar, mas deixei de desejar esse amor. E o que é o amor sem desejo? Acho que ambos sabemos a resposta. Eu pelo menos sei!
533
Escrevia todos os dias, à mesma hora, alheio às musas e aos humores. E quando nada tinha para dizer escrevia sobre as impossibilidades da escrita. Que as tem!
532
Com a mesma fórmula elegante e lapidar de sempre encerrou, com um brevíssimo sorriso, mais um gigantesco processo de milhares e milhares de páginas: Arquive-se.
531
Escreveu dezenas de contos mínimos, belos como teoremas, e morreu cedo, antes dos trinta. A brevidade foi a sua bandeira.
530
Certo homem perdeu-se um dia de amores como nunca antes lhe tinha acontecido. Mas a sua amada deixou bem claro que aquele era um amor impossível, e ele quase acreditou, com muita, muita pena. No entanto, era um homem teimoso e persistente, que não conhecia o fracasso e, para além disso, acreditava sem reservas no poder do amor verdadeiro. Não desistiu, pois, até mudar de sexo, e a partir daí foram as duas muito felizes para todo o sempre. Afinal tinha razão quando muitas vezes afirmara: "sou uma fufa presa no corpo de um homem".
529
Falou do amor como uma paixão serena, mas ninguém compreendeu o que ele dizia. Talvez não soubessem que aquilo que no amor parece contraditório só o é afinal à primeira vista. Na verdade, leitor incrédulo, o amor é um claro enigma que precisa de ser desvendado de olhos bem fechados.