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mil e uma pequenas histórias
30.10.02
 
73.

Um homem que passeava o seu cão no jardim público desapareceu misteriosamente. Desapareceu de repente, à frente de várias testemunhas. Todas as pessoas interrogadas foram unânimes em afirmá-lo, não houve forma de demovê-los, o homem desaparecera no ar. Os jornais falaram em alucinação colectiva, chegando mesmo alguma imprensa a afirmar que o homem fora raptado por alienígenas. Nunca se soube quem era e , apesar das investigações realizadas, parecia nunca ter existido. Muitas pessoas foram ouvidas, muitas opiniões foram avançadas, mas ninguém deu atenção ao escritor que, em poucas palavras, explicou o sucedido: o homem caíra fora da sua história.
 
 
72.

Nas paredes das casas eram visíveis os buracos de balas disparadas pela polícia. Buracos que se repetiam no corpo do homem. Era um homicida, um homem perigoso que nada tinha a perder. Chamavam-lhe homem-bomba e mata-bófias. No bolso esquerdo do blusão de cabedal foi encontrado um livro. Estava trespassado por uma bala que lhe foi direita ao coração. O polícia pegou no livro com mágoa. Amava aquele romance e doeu-lhe imenso vê-lo assim vandalizado. Sentiu como se assistisse à morte de um amigo querido. Olhou para o cadáver com raiva e cuspiu-lhe no rosto. Os outros polícias seguiram-lhe o exemplo.
 
29.10.02
 
71.

Uma bala perdida atingiu mortalmente um homem de quarenta e cinco anos, em Loures. A bala estava adormecida dentro da arma. Há muito tempo que aí estava e nada parecia ter acontecido desde então. Despertou perturbada e a sua vigília fez-se trajectória. Da explosão da partida ao som cavo da chegada ia uma linha mortal. A bala antecipou o impacto, viu com nitidez o ponto letal onde a sua massa iria penetrar sem apelo o corpo do homem. Quis desviar-se, quis que entre si e o homem se erguesse um obstáculo intransponível, mas nada podia fazer; sentiu-se perdida, completamente perdida.
 
28.10.02
 
70.

Um homem de vinte anos vandalizou quarenta e sete viaturas num percurso de pouco mais de quinhentos metros, tendo acabado por ser detido em flagrante delito pela polícia. Na ocasião afirmou, serenamente, que era um anjo caído do céu; estava descalço e era belo, mas não acreditaram nele; não tinha asas e, para além disso, é certo e sabido que é muito duvidosa a existência dos anjos. Perguntaram-lhe porque partira os vidros e os espelhos, respondeu que se deixara fascinar pelo mistério do som multiplicado. Quando começou a subir na vertical, lenta e inexoravelmente, como um balão honesto, os policias olharam surpresos para cima, para além dele, à procura de uma explicação; um deles disparou então um tiro de aviso, para o ar, que lhe acertou em cheio no coração, a ascensão interrompida, o corpo precipitado no solo com um espasmo, onde se quedou inerte. Afinal, contas feitas, era apenas um homem, que os anjos, esses, são puro espírito e não vêm mencionados em relatórios da Amnistia Internacional como vítimas da violência policial; estão decididamente acima dessas coisas.

69.

Quando chegou a casa, à hora a que sempre chegava, habitualmente, encontrou a mulher e o seu melhor amigo deitados no tapete de Arraiolos da sala. Reparou que a mesa rectangular de tampo de mámore rosa tinha sido afastada e a lareira estava acesa. Ainda vestidos, as roupas descompostas apenas o suficiente para permitir a consumação do acto, não deram por ele. Sentou-se no sofá e olhou para a televisão: o homem e a mulher rolaram no chão e trocaram de posição, ele penetrando-o agora por detrás, ela ondulando o corpo ao seu encontro. Estavam tão perto dele que bastaria estender a mão para lhes tocar. Agora gemiam num uníssono cada vez mais acelerado, interrompido súbitamente por um excitado locutor anunciando um suicídio, pela primeira vez, em directo na televisão: do nono andar de um prédio de apartamentos onde vivia com a sua mulher, um homem precipitara-se para o vazio e para a fama, póstuma.

68.

Naquele dia todas as árvores da cidade velha amanheceram enlutadas. Fitas negras cingiam-lhes os troncos, com elegância, e as suas pontas, soltas, pendiam como estranhos e amargos frutos. As pessoas interrogaram-se, de imediato, sobre o motivo de tão singular repetição; mas só quando as árvores começaram a andar, convergindo lenta mas decididamente para a praça principal, interrompendo o trânsito e lançando a confusão nas ruas, é que se espalhou a convicção de que se tratava de um acto de protesto. A inquietação assaltou toda a gente e, no momento em que ao rumor do vento na folhagem se sobrepôs o fragor crescente das palavras de ordem, o medo instalou-se. A polícia e o exército, chamados a intervir, chegaram à praça dispostos a dispersar por todos os meios a manifestação, mas as árvores fincaram as raízes bem fundo, rompendo sem custo a calçada portuguesa, e nada as arrancou daquele lugar. Um ano depois ainda lá estavam todas, dominando a praça agora denominada Praça Verde e invadida por centenas de espantados ecoturistas vindos de todas as partes do mundo, mas tinham-se calado há muito, e poucas se lembravam ainda do dia em que ali tinham chegado em luta.
 
24.10.02
 
67.

Personagem: ele. Ele ia. Ia pensando. Pensando na vida. Vida sem sentido. Sem sentido não é possível viver. Não é possível viver assim. Assim ia ele. Ele: personagem.
 
 
66.

Era uma vez um homem a quem nada corria bem. Como era dado à reflexão, passava muito tempo a pensar na sua vida. Disciplina e persistência é tudo o que é preciso para obter o que desejamos - foi a esta conclusão que ele chegou finalmente. E se assim o pensou mais depressa o fez. Mas não havia nada a fazer. A disciplina e a persistência foram inúteis no seu caso. Escreveu um livro sobre o assunto, que se tornou um campeão de vendas, e foi feliz para sempre. Morreu, sem que se saiba porquê, num sete de Outubro.
 
23.10.02
 
65.

Mais uma história. Um homem roubou um automóvel com uma criança de meses no seu interior. Pensou que estava apenas a roubar mais um automóvel, não percebeu que a história era outra. Novas histórias estão a acontecer a todo o momento, e nem sempre são aquelas que esperavamos. O que é que isto quer dizer? Que as histórias acontecem. Nós apenas as contamos, depois. Só então elas existem verdadeiramente.
 
22.10.02
 
64.

Todas as histórias têm de ter um fim, nem que seja, ou sobretudo por isso, para que outras comecem. Quantas histórias deixamos por acabar, histórias que precisavam de terminar para que outras podessem começar. E só nós, cada um de nós, pode terminar essas histórias. Ele sentiu-se atraído por ela. Sentiu vontade de a conhecer e de se dar a conhecer. Tentou aproximar-se, estabelecer uma relação; mas , a partir de certo momento, o que deveria ser uma aproximação transformou-se numa despedida. Podíamos... - disse ele para si mesmo, e não era o início de uma frase, mas sim um ponto final numa história que, como todas as histórias, precisava de um fim.
 
21.10.02
 
63.

A pedra era cúbica e ajustava-se perfeitamente à palma da mão. Foi isto que ele pensou quando a apanhou do chão, e olhou-a com desvelo. Lançou duas vezes a pedra ao ar, duas vezes a agarrou com a mão direita. À terceira não a conseguiu agarrar, ainda hoje não percebe porquê, e a pedra caiu-lhe desemparada em cima do dedo grande do pé direito. Ficou tão zangado que a agarrou de novo, e atirou-a para longe com raiva. Nunca veio a ter conhecimento da morte de uma mulher de vinte e três anos que sofreu morte instantânea. Nem soube o que lhe aconteceu. Ninguém soube.
 
 
62.

Mudou de carro. Mudou de nome. Mudou de aspecto. Mudou de profissão. Mudou de residência. Nunca ninguém consegui perceber porquê. Nem ele.

61.

Mudou tão completamente que já ninguém o conhecia. Não o deixaram entrar no local de trabalho (era estritamente proibida a entrada a estranhos ao serviço), e a mulher expulsou-o de casa ameaçando chamar a polícia (era uma mulher honesta e enérgica). Tinha mudado tão completamente que nem se importou com o que lhe estava a acontecer. No fim de contas, agora podia ser outro.
 
18.10.02
 
60.

Foi o último a saber que tinha morrido. Durante muitos dias frequentou os locais habituais sem se aperceber que estava morto. Claro que todos sabiam mas ninguém lhe disse nada. Não é uma coisa muito agradável para se dizer a quem quer que seja e ninguém o queria entristecer. Ele sentia-se bem, muito bem, e só quando se apercebeu que essa sensação não desaparecia é que soube que estava morto.

 
17.10.02
 
59.

O que é o amor? - perguntava a todas as pessoas que encontrava. Algumas ficavam caladas e sorriam, mas a maior parte respondia-lhe. Acreditavam que estavam a ser entrevistadas. Estranhavam a nudez de acessórios mas acreditavam. Ele quase não as ouvia, mal acabara de perguntar e já estava pronto a ir-se embora. Não procurava respostas, as respostas não são importantes, o importante é a pergunta, sem a pergunta não existem respostas. O que é o amor?
 
16.10.02
 
58.

Será que temos alma?- interrogou-se o médico legista. Na verdade, tanto lhe fazia, mas a visão dos corpos sem vida pedia-lhe sempre essa pergunta. Tinha visto muitos cadáveres mas nenhuma alma, o que lhe parecia natural. Se o cadáver é um corpo sem vida não seria nele que se encontraria uma alma. Talvez o que chamamos alma seja apenas a vida. Um corpo sem vida não teria pois alma. Serrou o crâneo do cadáver da jovem sem vida e, o cérebro a descoberto, espreitou para dentro da sua cabeça com uma expressão entre o curioso e o surpreendido. Nada estava ali que não devesse estar. Não sabia bem porquê mas esse facto trazia-lhe sempre um não sei quê de desilusão.
 
15.10.02
 
57.

A P.S.P. do Porto deteve ontem um homem de 23 anos que transportava o cadáver da namorada na mala do carro. O homem estava calmo e respondeu com solicitude a todas as perguntas da polícia. Afirmou que a levava na mala porque ela se sentia mais confortável assim. Quando lhe perguntaram como tinha morrido a namorada, respondeu que não sabia. Quando a conhecera já estava morta. Apesar de muito calada era divertida e boa companheira, acrescentou. Tinham-se conhecido num funeral e fora amor à primeira vista. A polícia está agora a investigar a história.
 
14.10.02
 
56.

Naquele dia o candidato apertou a mão a duzentos e cinquenta e sete homens, beijou trezentas e oitenta e quatro mulheres e crianças, abraçou indiscriminadamente trinta e um indivíduos de ambos os sexos, independentemente da raça, credo ou convicção política, e a todos eles dirigiu uma breve saudação ou comentário mais ou menos espirituoso mas sempre adequado, incitando ao voto, vendendo a imagem da vitória. Numa semana apertara a mão a mais de mil e quinhentos homens e beijara aproximadamente duas mil e oitocentas mulheres e crianças, para além de não menos de duzentos e vinte abraços, num total de outros tantas saudações e comentários. Não admira pois que a certa altura se tenha confundido e beijado um homem, abraçado uma mulher e apertado a mão a uma criança. Foi a morte do artista, por assim dizer, perdeu as eleições — por uma elevada margem — e viu-se forçado a abandonar para sempre a política, perante as acusações — largamente difundidas pelos media — de homossexualidade, assédio sexual e maus tratos a menores.

55.

Matou a mulher sem intenção, só à quarta facada percebeu que ela podia morrer, os seguintes trinta e seis golpes foram desferidos por puro desespero, logo que se acalmou telefonou a chamar uma ambulância. Foi o que declarou sob juramento em tribunal, no próprio dia do julgamento, o discurso entrecortado por um choro convulsivo. Os juizes foram compreensivos, afinal de contas o homem estava arrependido e a mulher morta, são coisas que acontecem, enterrados os mortos é preciso cuidar dos vivos. A sentença, modelo de lucidez e sabedoria, condenou o réu a escrever, à mão, três mil e seiscentas vezes — em substituição de igual tempo de prisão efectiva —, “eu não volto a brincar com facas”. Interposto recurso da decisão, alegando-se que a pena era cruel e humilhante, veio o Supremo a dar-lhe provimento, em parte: a pena mantinha-se, mas podia ser cumprida ao computador.

54.

Não sabia que o era até ter lido a palavra e o seu significado. Nunca a tinha ouvido, nunca a tinha lido, poderia ter passado toda a sua vida sem nunca a ter encontrado. E no entanto a palavra servia-lhe como um fato usado, às mil maravilhas. Descobriu-a por acaso, ao abrir um dicionário, na letra d, mais precisamente, ao topo, na coluna da direita, numa página às tantas ímpar, leu deturbar, sim deturbar e não deturpar, essa estava duas entradas abaixo, e perturbou-se, deturbou-se, contrariado, deturbado, mas ainda ficaria pior quando, depois de ter ignorado Deus, quatro entradas depois de deturpar, o rosto deturpado, agora sim, deparou então, mais abaixo, quase ao fim da página, com a palavra que lhe assentava como uma luva exótica. Claro que primeiro só lhe chamou a atenção a sua sonoridade esquisita. Leu-a, com dificuldade, soletrando-a, medindo-a, tentando decidir se gostava ou não dela. Só depois consultou o seu significado. Espantoso, aquela palavra designava-o, aquela estranha e no entanto familiar palavra falava de si; como poderia não ter ficado deturbado com aquele surpreendente encontro. Afinal não é todos os dias que alguém sabe que é deuterógamo, mesmo que já o fosse.
 
11.10.02
 
53.

A linha não tinha uma cor definida. Brilhava, sim, brilhava, mas era impossível dizer se era azul, ou cinzenta, ou outra cor qualquer. Até o brilho era estranho, quase se diria baço, antigo. Também não se avistava um começo ou um final, estendia-se para além do olhar, e não era recta, embora a sua curvatura, se é que a tinha, não era fixa, antes parecendo ondular, ou tremer. Tão singular era, capaz talvez de iludir os sentidos. Não tinha odor, ou pelo menos não o senti, e embora parecesse zumbir, não ouvia qualquer som. Tentei tocá-la, tentei aproximar-me dela, mas não consegui, parecia estar sempre à mesma distância. Sustive a respiração e saltei, repentinamente, para além dela. Consegui, estava para lá da linha. Caminhei um pouco, avançando no novo território com alguma cautela. Quando olhei para trás, ela já não estava ali, tinha desaparecido, estava perdido. Compreendera de repente que aquela não era outra senão a linha que separa a normalidade da loucura, ténue e inconstante fronteira entre dois mundos, armadilha sem retorno para os incautos e outros tolos menores. Tentei manter o sangue frio; primeiro, olhei em todas as direcções a confirmar o seu desaparecimento, depois passei em revista os objectos que tinha comigo. No bolso interior esquerdo do casaco encontrei a minha inseparável caneta azul celeste; com ela tracei uma nova linha, à imagem da outra, e atravessei-a. Respirei fundo, tinha conseguido regressar, ao lado de cá.

52.

A nódoa era pequena, nítida e delimitada. Julgou que desapareceria após uma simples lavagem na máquina, com um detergente normal, em água fria, mas não, ainda estava lá, pequena, nítida, delimitada e teimosa. Nova lavagem, agora a 40.º graus, e nada, nada de resultados, melhor será dizer, porque a nódoa permanecia inalterada. Tira nódoas, detergente localizado, sei lá que mais, mais uma e outra vez, sem efeito. Por último esfregou-a à mão, com vigor, com raiva, com desespero, várias vezes. A nódoa persistia, pequena, nítida, delimitada, invencível. Sentou-se à sua frente, olhando-a fixamente, à espera de inspiração. A nódoa não ia sair, isso era uma certeza. Queria ele viver com a alma maculada, irremediavelmente manchada? — esta era a pergunta que devia fazer a si mesmo. Fê-la, e decidiu que não. Queria viver, sim, mas não assim. Só lhe restava uma solução: tornou-se materialista e deitou fora a alma que de nada lhe servia, agora.

51.

A mancha começou por ser pequena, como tudo que nasce e se desenvolve, antes de ser grande, muito grande, imensa. As perguntas habituais continuam, no seu caso, sem resposta. Onde apareceu? Não se sabe; parece que terá surgido um pouco por toda a parte, ao mesmo tempo. Quem a propagou? Desconhece-se; revelou-se por igual em seres animados e inanimados, propagou-se sem restrições, sôfrega. Como se transmitiu? Ignora-se; cresceu sem mais, como óleo no mar, como uma doença de pele, como tinta entornada, pequenas manchas que se foram juntando, unindo, até existir uma mancha apenas, cobrindo tudo como uma sombra, cinzenta, baça, fria. Tudo isto demorou pouco tempo — para ser rigoroso, exactamente trinta e dois dias, quatro horas e cinquenta e um minutos —, deixando toda a comunidade científica às aranhas. Dez anos passados de exaustivas pesquisas, consegui-se uma primeira vitória, introduzir cor na mancha, um azul bebé que se estendeu num ápice por toda a Terra, devolvendo-lhe o antigo título de “planeta azul”.

50.

No exacto dia em que fez dezoito anos, mais precisamente no final do almoço de aniversário, o pai desejou-lhe muitas felicidades e convidou-o a sair de casa, imediatamente, era tempo de viver a sua vida, já era um homem feito, com tudo o que isso implicava de direitos e deveres. Agradeceu ao pai, tudo o que tinha feito por ele, e saiu sem mais demoras nem bagagem. Não lhe guardou ódio ou rancor; vinte anos depois, quando o pai morreu, depois de lhe ter sido diagnosticada uma doença terminal, foi ele o único que esteve ao seu lado, mesmo até ao fim, ajustando-lhe a almofada, contra o rosto. Todos os anos, por altura do aniversário da sua morte, leva-lhe flores à campa rasa e sorri, mansamente.

49.

Vivia longe, há já vários anos, mais de cinco, situação que não procurou, antes lhe aconteceu, como tudo na sua vida, desde o nascimento na miséria — mas quem é que escolhe as circuntâncias em que nasce? —, passando pelo precoce abandono escolar a par da inevitável e imediata entrada no mundo do trabalho indiferenciado — mas quantos podem determinar o seu lugar na sociedade? —, terminando, para nada mais referir, nos sucessivos desaires amorosos — mas existirá alguém que possa dominar o amor, moldá-lo ao seu desejo? Vivia longe, longe de tudo o que sempre o perturbara, o incomodara, o levara a desejar, algumas vezes, nunca ter nascido, nunca ter vivido. Vivia por toda a cidade, na baixa, nas ruas, debaixo dos aquedutos, onde calhasse, ausente, excluído, conformado.

48.

Quando o começavam a interpelar, com um desculpe preambular, ou de outra qualquer forma, ou mesmo apenas quando lhe dirigiam a palavra, respondia logo que não, a resposta era não, mas nunca deixava de acrescentar “mas qual é a pergunta?” Detestava responder ao que quer que fosse, detestava colaborar com quer que fosse, mas era curioso, à negação seguia-se sempre a interrogação, caminho inverso e invulgar, pois normalmente primeiro vem a interrogação e só depois a negação. No seu caso o não não era uma resposta mas uma recusa de resposta, profunda, filosófica; não, não queria, mas depois a curiosidade vencia-o e cedia ao desejo de saber a pergunta. Assim aconteceu quando a morte o abordou, apenas ela tinha aberto a boca, ainda nenhum som se soltara dela, já ele dizia não, não, mas logo a seguir, qual é a pergunta? Queres continuar a viver? — disse a morte — Era esta a pergunta, e aceito respostas antecipadas, que o tempo é curto e o trabalho muito. “Não”, gritou ele, “não”, mas de nada serviu, à sua resposta a morte juntou nova pergunta: Queres dizer mais alguma coisa? — e levou-o consigo, de imediato, que a morte é ardilosa e trocista, mas não brinca em serviço. (Não digas não se podias dizer sim.)
 
10.10.02
 
47.

Passeava pelo jardim municipal quando se sentiu diferente. Um quase nada. Uma fugidia sensação de mudança. Tentou desesperadamente capturá-la mas em vão. Sentou-se num banco, desanimado, e ficou à espera.

46.

Mudou completamente. Foi uma mudança profunda, interior, irreversível.Ninguém se apercebeu. Via as coisas de maneira diferente (era esta a mudança) mas o seu aspecto não sofrera modificações (a sua imagem permanecia inalterada). Com o tempo ele mesmo se convenceu que nada mudara.

45.

Mudou do dia para a noite. Foi uma mudança indesejada. De dia estava vivo e à noite estava morto.
 
2.10.02
 
44.

Todas as histórias têm um princípio, um meio e um fim. Tal e qual uma sanduíche. O princípio e o fim suportam o meio. Tal e qual uma sanduíche. Sem as fatias de pão o recheio cairia, o que seria bastante desagradável e inestético. A sanduíche obedece a uma estética do belo e do funcional. Tal e qual as histórias. Mesmo as que têm pouco recheio.
 
1.10.02
 
43.

Ontem, cerca das 21 horas, um homem matou a mulher por causa de um iogurte. Ele queria comer iogurte mas a mulher queria que ele comesse sopa. Eram horas de jantar, disse-lhe ela, comer iogurte estava fora de questão. Discutiram durante muito tempo, em voz alta, quebrando copos e pratos. A dada altura o homem agarrou um garfo, avançou lentamente em direcção da mulher, e espetou-lho com força na jugular. Depois foi para a varanda comer o iogurte. Era um iogurte cremoso e com pedaços de pêssego amarelo. O homem adorava aqueles iogurtes e comeu-o com prazer. Interrogados os vizinhos, aqueles foram unânimes, todas as horas são boas para se comer iogurtes.
 



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Luís Ene

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