mil e uma pequenas histórias
DOUBLE FACE (À Helena Matos)
344.
“A beleza vem de dentro. Uma pessoa não é bonita. Sente-se bonita.” Foi isto que a modelo disse, a boquinha num pequeno oh! de contido espanto. A beleza está dentro de nós, disse-lhe mais tarde o amante, no mais fundo de nós, e é aí que deve ser procurada. Ela riu-se muito, e disse-lhe que tivesse juízo. A beleza está em nós, no que somos, nem dentro nem fora — acrescentou sem parar de rir. Ele ainda não sabia isso? Olhou para ela e viu-a bela. Foi nesse momento que se apaixonou perdidamente. E foram muito felizes para sempre. Porque não?
345.
Era uma vez um homem feio que despedaçou muitos corações femininos. Nunca foi apanhado, e escapou sem castigo, acabando por morrer aos noventa anos de idade. Estivessem aquelas mulheres então vivas e decerto chorariam por ele na hora da sua morte. [Esta história não tem qualquer moral oculta. É verdade.]
343. Uma pequena história deveras inflada
(tão inflada que voou para o blog
Segredos de Deméter)
APARVALHADAS
340.
Há muito tempo já que os ratos não têm medo dos gatos, e que estes, por sua vez, não os comem, mas isto não quer dizer que sejam amigos. Na verdade, ainda está por descobrir se os ratos deixaram de ter medo dos gatos porque estes os deixaram de comer, ou se os gatos deixaram de comer os ratos porque estes deixaram de ter medo deles. Seja como for, não há notícia de um rato ter comido um gato, o que não deixaria de ser um desenvolvimento possível nos tempos que correm. Vamos todos esperar e ver o que acontece.
341.
Era um dia igual aos outros, foi o que ele pensou, mas muitas coisas extraordinárias estavam para acontecer. E tão extraordinárias e maravilhosas foram que seriam precisos muitos dias para tão só as resumir. Ele não deu por nada, a sua previsão cumpriu-se, foi apenas mais um dia que passou.
342.
Estava na hora de regressar, e foi isso que ele fez. Só quando chegou ao ponto de partida é que percebeu que não tinha afinal regressado, mas iniciara uma nova viagem. [A moral desta história é abstrusa: podemos regressar ao ponto de partida mas não ao ponto de onde partimos.]
BUSCAS E REBUSCAS
338.
Ele sabia o quanto imperfeito era, mas isso nunca o incomodou, pois há muito sabia existir mais perfeição na imperfeição humana do que aquela que lhe é possível suportar, pois se o homem é imperfeito, estranho seria que as sua obras não o fossem, e ele pudesse ver com clareza para além delas e de si mesmo. Ele era imperfeito, já foi dito, mas isso nunca o impediu de procurar a perfeição, ainda que as suas obras jamais viessem a ser perfeitas. [A moral desta história não escapa à imperfeição geral: o processo é mais importante do que o resultado.]
339.
Foi ao encontro do silêncio, eliminando uma a uma todas as fontes de ruído. No final quis regressar a si mas não consegui já ouvir a sua própria voz. Não fosse este pequeno percalço e ainda hoje estaria vivo. [A moral desta história é por demais gritante: podes calar-te por quanto tempo quiseres, mas tem cuidado não percas a voz.]
337. Viver
Viva como as flores, disse o mestre com ênfase ao seu aluno, mas aquele não o ouviu no seu coração, e deixou-se ficar por ali encostado ao muro, pensando em tudo o que o preocupava e o impedia de ser feliz. Nenhuma das pessoas que por ali passaram, e foram muitas, o viram belo e natural, antes pelo contrário, todas o acharam demasiado sério e murcho. Felizmente também ninguém pensou em colhê-lo e levá-lo consigo como um precioso ornamento. [A moral desta história sisuda é na verdade bastante leviana. Viva como uma flor, mas não leve isso demasiado a sério.]
336. Era uma vez
(…) Desesperado procurou por todo o lado uma pequena história. Mas não encontrou nenhuma por contar. Era como se não existissem novas histórias, no entanto ele bem calculava o que acontecera. Perdera o seu dom mais precioso. As histórias, não importa o seu tamanho, não se mostram a quem não acredite nelas, e de certeza que era isso que lhe tinha acontecido, perdera a capacidade de se maravilhar. Mas nem tudo estava ainda perdido. Repetiu vezes sem conta o chamamento mágico, até que uma pequena história apareceu. Era uma vez um homem que deixara de acreditar que é possível tudo imaginar. (…)
335.
Estava dentro de um livro quando pela primeira vez na vida se sentiu completo e em harmonia com o ser do mundo, e foi isto o que ele disse muito mais tarde aos seus netos. Mas enquanto eles pensaram que era apenas mais uma história de um velho maluco, ele tinha a absoluta certeza que lhes estava a contar uma verdade das mais importantes, pois aquilo que os livros têm lá dentro, e a que muitos chamam literatura, é afinal a própria vida. Mas estava-se nas tintas. E eles também. Disso não há qualquer dúvida, por mais pequena que seja.
334. Uma pequena história
Estava uma pequena história deitada na areia a apanhar sol, quando sentiu que alguém a olhava com despudor. A sua primeira ideia foi fazer de conta que não era nada com ela, mas algo lhe disse que a situação exigia outra atitude. Era um escritor, contou ela mais tarde às amigas espantadas, soube-o logo por causa do seu olhar ao mesmo tempo ausente e atento de alucinado. A verdade é que só se salvou porque fugiu a sete pés sem olhar para trás. Sabe-se lá o que o escritor lhe teria feito se tivesse tido oportunidade. Foi por um triz!
EXISTÊNCIA
331.
Tinha em casa muitos espelhos e olhava-se neles vezes sem conta. E o mesmo acontecia com todos os outros espelhos que encontrava. Era um homem belo e atraente, muito preocupado com o seu aspecto. Não admira pois que a sua obsessiva contemplação de si fosse considerada como uma mera preocupação com a aparência, quando na verdade ele o fazia para se assegurar que existia. Levava a existência muito a sério.
332.
O mestre explicou mais uma vez ao seu aluno a diferença entre existência e consciência de si, e ele afirmou de novo que, se era possível existência sem consciência de si, não via porque não seria possível consciência de si sem existência. Era um homem teimoso, mesmo muito teimoso, o tipo de homem capaz de afirmar que, se os seus pais não o tivessem concebido, ele teria nascido na mesma.
333.
Um certo dia, dois filósofos passeavam por uma alameda ao mesmo tempo que discutiam sem cessar se o mundo existia dentro ou fora deles. Quando a discussão parecia ter chegado a um beco sem saída, um deles deu um pontapé numa pedra que ali estava no caminho. “Vês”, disse ele gemendo, “o mundo existe”, mas o outro só se convenceu de verdade quando o primeiro lhe acertou com uma pedrada.
CÉU E INFERNO
329.
Existem momentos em que vemos pela primeira vez o que há muito tempo estava à nossa frente, como se descobríssemos por acaso a resposta a um enigma já esquecido. Todos sabemos isto. Já nos aconteceu. E a ele também, mas daquela vez foi demasiado tarde, estava morto, e mais nada podia fazer a não ser rever eternamente o seu erro.
330.
Quando morreu só encontrou a morte, e nada mais. Nem túnel, nem luz, nem anjos sorridentes, nem mesmo o eterno descanso. Apagou-se apenas, e deixou de estar no mundo. Mas o melhor de tudo é que nunca mais pensou em coisa alguma. Verdade seja dita, foi como ele sempre imaginara.
NO MIND GAMES
327.
Somos o que pensamos ser, assim pensou ele, e passou a partir daí a ser o que pensava. Mas ninguém deu por isso, e achavam que ele estava cada vez mais na mesma, o que não deixava de ser verdade, embora não fosse bem assim, pois se somos o que pensamos ser, também não podemos deixar de ser o que os outros pensam que somos.
328.
Somos o que pensamos ser, pensou, e assim era ele, em nada diferente dos outros, porque era afinal, tal como eles, o que pensava ser. Todos se lembram bem dele e do que ele pensava ser, e embora não fosse para eles o que pensava ser, era sem dúvida o que ele era e nada mais era do que isso.
SOPA DE LETRAS (à Laurinha)
325.
Quando o “o” está sozinho, farto já de imitar o “u”, gosta de se armar às vezes em valentão, e então ele é ó para lá e ó para cá, por tudo e por nada, num tom roufenho e rufião, mas basta que outro “o” se lhe junte, para que afinal nada se passe, a não ser um bom oó.
326.
O “a” e o “h” viajam por todo o lado, não é pois de admirar que, quando se encontram, tenham sempre tantas e tão diversas histórias para contar um ao outro, e não há sentimento que entre eles não exprimam: espanto, dor, alegria e o que mais houver. Ah! Não acreditam? Mas é a mais pura verdade. Ah! Ah! Ah!
PERGUNTAS E RESPOSTAS
323. (à Natália)
Sentia a mente vazia e a alma transbordante, ou talvez fosse ao contrário, a mente transbordante e a alma vazia, mas não perdeu nem um instante a resolver esta dúvida, pois sabia muito bem que o mundo assenta em dinâmicos paradoxos, e limitou-se a expirar e a inspirar profundamente até que o equilíbrio se restabelecesse em si . Tinha sido uma longa caminhada sem perguntas ou respostas essenciais para que estragasse tudo agora. [A moral desta pequena história é deveras inquietante: a verdade está entre a pergunta e a resposta.]
324. (ao Alexandre)
Quando o cubo negro surgiu do nada, no centro do jardim das palmeiras em frente à capela, ninguém pareceu dar por ele. Mas, pouco a pouco, sobre ele se contaram mil e uma histórias, todas elas diferentes e maravilhosas. Um belo dia desapareceu, tão misteriosamente como aparecera, e outras tantas histórias foram contadas. O seu enigma ficou no entanto sem resposta até hoje, o que afinal sempre acontece com os verdadeiros enigmas, por mais perguntas e respostas lhes sejam oferecidas.