<$BlogRSDURL$>
mil e uma pequenas histórias
14.7.05
 
 
 

A primeira pequena história foi editada em 20 de Agosto de 2002 e, quase três anos depois, o projecto chega ao seu fim com a milésima primeira. Foi uma estrada longa, uma lição de paciente e teimosa persistência que espero nunca esquecer. A todos os que encontrei no caminho, um abraço fraterno.

Mil e uma...

Para andar, basta pôr um pé à frente do outro, e para se chegar ao fim, basta mais um passo. Escrever não é diferente, seja uma pequena história ou mil.
 
 

3 (998)

Estava quase a chegar e admirou-se por não se sentir feliz ou infeliz, mas depois pensou que tudo tem um começo e um fim. Na verdade é sempre assim.

2 (999)

Estava quase a chegar quando lhe ocorreu que talvez nunca chegasse realmente. Foi nesse momento que percebeu afinal que se está sempre em viagem.

1 (1000)

Estava quase a chegar quando pensou voltar para trás, mas a verdade é que há coisas que uma vez postas em marcha não podem ser contrariadas, e quando percebeu isso já tinha chegado.
 
13.7.05
 

4 (997)

O tempo presente

Três, dois, um
ou um, dois, três,
na verdade tanto faz
o tempo passa a correr
estamos sempre a chegar
estamos sempre a partir e
o fim e o começo
são afinal a mesma coisa
o tempo que falta
o tempo que passou
na verdade tanto faz
três, dois, um
ou um, dois, três
 
 

5 (996)

Em queda livre

Quando digo a mim mesmo, “Não hesites, vai em frente”, o que faço muitas vezes, penso de imediato naquela frase infeliz que falava de estar à beira do abismo e dar um passo em frente. Mas logo acrescento que às vezes é preciso cair, é necessário acreditar e, quem sabe, erguermo-nos no ar e voar para muito longe. Porque é afinal de paradoxos como estes que a vida é feita.
 
 

6 (995)

Na estrada de Damasco

Você vai ter tudo o que precisa, diz-me uma mulher que não conheço, na fila do autocarro. Você é um homem bom, a vida vai correr-lhe bem, afirma-me um mendigo a quem dou algumas moedas. Acredite que é possível e mude a sua vida, anuncia-me o horóscopo numa das últimas páginas do jornal diário. E eu, que gosto de seguir as minhas próprias opiniões, fico a pensar que têm razão, que pouco a pouco, com muita paciência e persistência, tenho seguido o meu caminho, este mesmo que construo enquanto avanço, e que só me pode levar onde tenho de ir.
 
12.7.05
 

7 (994)

Encontro com a Morte

Tinha vinte e três anos,
morreu de repente,
o coração falhou,
disse-me ela quando lhe perguntei
o que fazia ali.
Senti um arrepio,
não de medo,
não porque dobrei já essa idade,
não porque há muito não a via,
nem sei bem,
acho que foi o habitual,
porque muito lhe ficou por viver,
porque nada podia fazer por ele,
e fiquei calado
a admirar-lhe o cinzento dos olhos,
a pensar como estava bela e
que o preto lhe ficava bem,
mas logo me despedi,
apressado,
não fosse ela pedir-me
para ficar.
 
 

8 (993)

Era uma vez uma mulher jovem que tinha um amante em Famalicão, e não porque o tivesse propriamente desejado, mas porque teve de ser, já que ele era casado com uma mulher muito ciumenta que não lhes deixava outra hipótese. Isto foi o que ela me contou, e eu escutei com atenção, e fiquei a pensar que daria uma pequena história engraçada, nem sei bem porquê, e acabei por escrevê-la, para não me esquecer dela.
 
11.7.05
 

9 (992)

Viver devia ser como andar de bicicleta

Aprendi a andar de bicicleta
mais tarde do que o normal.
Na verdade, já era um homem
quando comecei.
Não foi muito difícil,
estava determinado, e
não hesitei nem um momento.
Tinha sonhado muitas vezes
que o fazia,
e isso parecia-me decisivo.
Caí, levantei-me, insisti,
e quando dei por mim
estava a acontecer.
De forma hesitante,
com alguma dificuldade,
estava a andar de bicicleta,
e a partir daí fui sempre melhorando,
até que comecei a fazê-lo
sem precisar de pensar nisso,
sem me preocupar muito com isso.

Então lembrei-me do que se diz,
e pensei que viver é a mesma coisa,
vivemos tanto melhor
quanto menos pensamos nisso,
quanto menos nos preocupamos com isso.

E nunca mais me esqueci.
 
 

10 (991)

Num reino distante vivia uma princesa que nunca ria. Desesperado, o rei anunciou que casaria a princesa com quem a fizesse rir, e muitos foram os que tentaram. Mas afinal foi ela mesma que o conseguiu, quando um dia se olhou no espelho e se viu séria, tão séria que metia dó. Nunca casou, não sei bem porquê, mas nunca mais se esqueceu de rir.
 
 

Apresentação do livro Mil e Uma Pequenas Histórias, Volume I

Uma das características mais importantes do conto brevíssimo é, sem dúvida, a existência de diversas formas de hibridação genérica, cruzando-se e quase se confundindo com outros géneros literários e não literários, a ponto de às vezes ser legítimo o leitor interrogar-se: Mas isto é um conto?

Ao longo da escrita das pequenas histórias usei e reinventei vários desses formatos, como por exemplo a fábula, o aforismo, a história de proveito e exemplo, a notícia breve, a lista de compras, o elogio fúnebre e, finalmente, o poema.

Se me quiser ouvir falar um pouco sobre o conto brevíssimo e as suas características, assim como ouvir alguns contos brevíssimos, lidos por Mauro Amaral e Tixa, apareça no próximo dia 26, pelas 21:30, nos Artistas, em Faro, onde se fará a apresentação do livro Mil e uma Pequenas histórias, volume I.
 
 

11 (990)

A filosofia não é apenas o que os filósofos fazem

O que é importante?
perguntou ele
O que é realmente importante?
insistiu.
E eu, que muitas vezes faço a
mim mesmo essa pergunta
não soube o que lhe responder,
e fiquei calado.
Porque o importante é viver,
ou morrer,
se não se encontra um
sentido na vida,
se não se consegue viver
uma vida sem sentido.
Porque o pior é estar morto em vida,
morrer um pouco todos os dias.
Isso não é viver,
isso não é vida,
porque o importante é afinal
estar vivo e viver,
ou morrer
de uma vez por todas.
Mas isso ele não queria ouvir
e eu não queria dizer-lhe .
 
10.7.05
 

12 (989)

Todos os dias a mesma coisa

quando damos as mãos
quando nos beijamos
quando nos abraçamos
não há magia
mas rotina
simples rotina
coisas que fazemos todos os dias
há muito tempo
como respirar
como existir
milagres rotineiros
que não dão sentido à vida
é verdade, mas
são a própria vida
a vida que quero viver
assim mesmo
contigo
 
 

13 (988)

Poema salvo do lixo a insistência de uma amiga

sábado de manhã
estou no hipermercado quando
recebo uma mensagem
queijo de cabra curado
e fico a pensar se devo responder
sim?
vinho alentejano
não?
salada já pronta
chego a casa
não sei…
azeite, umas gotas de limão
contemplo as cores
pressinto as texturas
cubos de queijo
pinhões, ananás
será que devo?
abro o vinho
saboreio tudo com prazer
sorrio

como seria bom que
estivesses aqui comigo.
 
9.7.05
 

14 (987)

Quando não ser está completamente fora de questão

Pergunto quem sou
e respondo
pai, escritor, libertário
estúpido, generoso, ingénuo
completo idiota de meia-idade
com o cabelo branco e peso a mais
muito perto e muito longe de
alguma sabedoria
algum equilíbrio.

Elimino as respostas
uma a uma
na certeza de que o que ficar
o que não conseguir riscar
serei eu, e durante algum tempo assim faço
mas hesito, encho-me de medo
de nada restar a não ser o vazio
de nada ser
e desisto.

Mas quando me sento para escrever
olho o ecrã em branco
onde as palavras aparecerão
uma a uma
e pergunto-me se o vazio será
assim tão terrível
tão assustador.

Talvez a pergunta quem sou
não precise de resposta
talvez não peça
resposta alguma
Sei lá!
Sei lá quem sou!
Sou.
 
8.7.05
 

15 (986)

MAS O QUE É QUE ESTÁ A ACONTECER?, gritou, e estas foram as suas últimas palavras.
 
 

16 (985)

O amor

Ele queixava-se dela mais uma vez, e mais uma vez dizia que não sabia o que fazer. Sinto-me com um ciclista sem bicicleta, disse ele a certa altura, e ela riu-se muito. Ele riu-se também, pararam de discutir, beijaram-se e acariciaram-se. É assim o amor.
 
 

17 (984)

As ondas vêm e vão

inspiro.
atento à sensação
produzida nas narinas
pelo ar que entra.
expiro.
atento à sensação
produzida nas narinas
pelo ar que sai.
inspiro.
a partir do ventre,
a centímetros do umbigo,
o tórax enche.
expiro.
a partir do ventre,
a centímetros do umbigo,
o tórax esvazia-se.
inspiro, expiro.
respiro.
deixo-me respirar,
nada mais.
mas, de repente, forço-me a respirar,
e inspiro e expiro com aparato,
descontrolado,
o equilíbrio perdido.
recordo-me então
que as ondas vêm e vão,
e deixo-me ir, deixo-me ir.
inspiro, expiro.
respiro.
deixo-me respirar.
não estou ansioso, nem calmo,
nem triste, nem feliz.
respiro, nada mais…
e as ondas vêm e vão.
 
 

18 (983)

Escreveste um poema

Não sabia que sabia escrever
um poema.
Na verdade, acho que ainda não sei,
mas agora sei que consigo escrever
um poema,
pois então!
Isto disse ele, e continuou:
Quem disse que para escrever
um poema
é preciso saber escrever,
não sabia o que dizia,
ou nunca na sua vida escreveu
um poema.
E eu, que nada sei de poesia,
fiquei a olhar para ele
em silêncio.
 
 

19 (982)

quando escrevo

para escrever é conveniente ler muito,
saber o que é importante saber sobre literatura
e depois
esquecer tudo,
e escrever apenas o que se é,
nada mais,
como se nunca se tivesse lido ou escrito
coisa alguma.
só assim conseguiremos
escrever-nos.
pelo menos é isto que tento fazer:
faço como se nada soubesse,
a não ser, talvez,
que existo.
 
7.7.05
 

20 (981)

Conjugação do todo

Gosto de sensação que experimento
quando as coisas parecem encaixar-se.
Não como as peças de um puzzle, nada disso,
mas de uma forma bem diferente, como o mar na areia,
uma brisa no verão, os meus olhos nos teus.

Não sei se o mundo faz sentido nos raros instantes
em que sinto que as coisas se encaixam,
mas sei que paro tudo o que estou a fazer,
e fico para ali, alheio, tranquilo, absorto,
todo eu surpresa e deslumbramento.

E muito tempo passa até que desperto.
 
 

21 (980)

É difícil encontrar o verdadeiro amor. Às vezes até se encontra a pessoa certa, mas o momento não é o ideal. Outras, muito menos do que isso. Mas não é impossível encontrá-lo, é apenas difícil. Basta que as pessoas certas se encontrem no momento ideal, basta que acreditem que é possível encontrar o verdadeiro amor, basta que deixem o amor acontecer. Mais difícil é manter o amor verdadeiro. Mas também não é impossível, é apenas mais difícil.
 
6.7.05
 

22 (979)

Ia a mais de duzentos quilómetros à hora quanto viu a morte ali mesmo à sua frente. Não conseguiu evitá-la.
 
5.7.05
 

23 (978)

Um estudante perguntou a mestre Atemóia como podia saber com certeza o que queria, e o mestre respondeu-lhe:
— Pergunta a ti próprio e saberás a resposta.
— Mas o que quero eu quando a resposta à mesma pergunta é umas vezes sim e outras não?
— A resposta é só uma, umas vezes queres e outras não. Queres saber mais alguma coisa?
O aluno ficou em silêncio.
 
 

24 (977)

Sentia a sua falta, mas de uma estranha forma, pois se ela nunca estava, não era menos verdade que estava afinal em si, todos os dias. E isto muito o intrigava.
 
4.7.05
 

26 (975)

Matou a mulher com um único tiro na cabeça. Quando a polícia lhe perguntou porquê, explicou que a amava muito e não quis que sofresse.

25 (976)

Só se é aquilo que se acredita ser, ainda que às vezes se acredite ser aquilo que não se é. E para ele não era um mero jogo de palavras.
 
3.7.05
 

27 (974)

Mestre Atemóia tinha o hábito de responder com perguntas às perguntas dos alunos, o que os deixava sempre irritados. Certo dia, um deles, desesperado por não obter respostas, interpelou mestre Atemóia com rudeza:
Por que nunca dá respostas?
Ao que ele respondeu:
Por que fazes sempre perguntas?
Foi nesse momento que o aluno se iluminou.
 
2.7.05
 

28 (973)

Na esplanada do costume
beberico uma amêndoa amarga
com gelo e umas gotas de limão,
olho os jacarandás despidos de cor,
e penso em Raymond Carver.

Como são longos os dias de verão!
 
 

29 (972)

Toda a sua vida procurou a verdade para olhá-la bem nos olhos, e um dia finalmente encontrou-a , só que nessa altura há muito estava cego.
 
 

30 (971)

“Sentes-te só?”
“Não, nem por isso.”
Perguntou e respondeu a si mesmo.
 
1.7.05
 

(31) 970

Mestre Atemóia encontrou um dia um amigo que não via há muitos anos e, depois de alguns minutos de conversa, disse-lhe com surpresa:
Estás exactamente na mesma!
Ao que ele respondeu: Isso é bom, não?
Mas mestre Atemóia discordou com veemência: Não, não é bom, é péssimo!
Foi nesse momento que o amigo se iluminou.
 
 

32 (969)

Ontem, na rua de Santo António, junto à esplanada do café Aliança, um homem despiu-se por completo, empilhou a roupa no chão e pegou-lhe fogo, causando alguma perturbação entre os circunstantes. Depois, abandonou o local, entrando numa loja de vestuário, onde a polícia o veio a deter mais tarde, já completamente vestido. Interrogado sobre o sucedido, apenas disse, com um sorriso aberto, que o velho deve dar lugar ao novo.
 



***
... a ficção no seu mínimo...

Luís Ene

©2002/5

***
Faça-se ouvir:
envie-me um e-mail
deixe a sua opinião

***
em papel


clique para comprar

***
uma entrevista

uma crítica
***
"(...) desejaria reunir uma colecção de contos de uma única frase, ou de uma só linha, se possível."
Italo Calvino - seis propostas para o próximo milénio
***

histórias por tema

* ler e escrever *
* o zen à janela *
* o amor é o que é *
* da brevidade *
* fabulário *
* viva a morte *

***

todas as histórias
08.2002 / 09.2002 / 10.2002 / 11.2002 / 12.2002 / 01.2003 / 02.2003 / 03.2003 / 04.2003 / 05.2003 / 06.2003 / 07.2003 / 08.2003 / 09.2003 / 10.2003 / 11.2003 / 12.2003 / 01.2004 / 02.2004 / 03.2004 / 04.2004 / 05.2004 / 06.2004 / 07.2004 / 08.2004 / 09.2004 / 10.2004 / 11.2004 / 12.2004 / 01.2005 / 02.2005 / 03.2005 / 04.2005 / 05.2005 / 06.2005 / 07.2005 /

***
utilidades

língua portuguesa

literatura portuguesa

Opiniones y consejos sobre el arte de narrar

***
contos mínimos e outras insignificâncias

Augusto Monterroso
Mário Henrique Leiria
Julio Cortazar
Raúl Brasca
pequenos contos
contos zen
greguerias
Vicente Huidobro
estórias sufi
provérbios árabes

***
primos do blog

primeiros mil microcontos
ene problemas
microcontos da zezé
microcontos do carlos
a casa das 1000 portas
letra minúscula

***
outros blogs


o outro mil mais uma
A Contadora
Azul cobalto
Blog de esquerda
blogo
Blogs em.pt
bomba inteligente
bloco de notas
contra a ilusao
cruzes canhoto
Digitalis
e-pistolas
escrita
esquissos
ghostboy
J.K's Diary
Eu-Luis Rijo
Fumacas
Lucubrando
mar portuguez
noite escura
outro lado da lua
paragem de autocarro
pensamentos imperfeitos
pensar enlouquece
polzonoff
PortalC.Tellez
socially incorrect
telepatia
Templo de Atena
:totentanz:
um dia gnostico
vastuleC

fabio Ulanin
eugeniainthemeadow
rua da judiaria
Ma-Shamba
escorrega...
elasticidade
***



Powered by Blogger