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mil e uma pequenas histórias
31.10.03
 
394. Um homem de fé

Era uma vez um homem de fé. De uma enorme e inquebrantável fé. E a verdade é que nunca a perdeu, nem mesmo quando ela era tudo o que lhe restava, pois já em nada acreditava. Foi assim que se manteve sempre em movimento. [A moral desta história nem precisaria de ser enunciada: A fé move montanhas, e homens também.]


 
30.10.03
 
393. (à Maria João)

Começa-se sempre a contar uma história pelo princípio, mas como o princípio é onde se começa a contar, pode muito bem começar-se pelo fim que não fará diferença. E não sei se não se não se deveria sempre fazê-lo, começar pelo fim e ir por aí adiante até ao princípio, pois talvez só assim se escape à ilusão da causalidade. Certo homem morreu de velhice. Tinha cinquenta anos quando desistiu de lutar. No exacto dia em que fez trinta anos era um homem realizado. Aos seis anos nunca se cansava de brincar. Nasceu em silêncio, aos primeiros raios da manhã!
 
29.10.03
 
392. Era uma vez...

Para contar uma pequena história, como qualquer outra história, é preciso ter alguma coisa para contar, por mais pequena que seja, e o tamanho não é o mais importante, pelo menos nestas coisas da literatura, onde interessa mais aquilo que se invoca do que aquilo que realmente se mostra. Recapitulando, para contar uma pequena história o que é preciso é contá-la, pois quem conta logo alguma coisa acrescenta, e aquilo que se tem para dizer vem sempre ao de cima, um pouco como o azeite que nunca se afoga. [A moral desta história é lenta e ainda aqui não está.]
 
27.10.03
 
391. Rascunho

Chegar ao centro do labirinto é mais importante do que atravessá-lo, porque é nessa constante procura que toda a nossa vida se joga. Isto dizem alguns sábios, e muito mais, como se isso não chegasse já... Não existe apenas um centro, porque o labirinto também ele muda, à imagem da própria vida e de quem o percorre, e com ele o centro que se procura. E essa busca na verdade nunca acaba, porque ainda que o centro seja por fim alcançado, no centro de cada centro abre-se sempre uma ponte…
 
26.10.03
 
390.

A única certeza é que toda a vida é mudança, e assim sendo todas as mudanças nada mais são que certezas de vida. Assim pensou o homem, e no preciso momento em que assim pensava o mundo estava vivo e mudava, e tão rápido o fazia, que o que ele pensava já nada queria dizer, porque era como se o seu objecto fosse e não fosse já o mesmo. [Se o leitor se sentir confuso não estranhe, porque também assim se sentia o homem de que falo, e afinal todos os que ousam aproximar-se do paradoxo que o mundo é.]
 
23.10.03
 
389. A vida na gaveta

Uma certa mulher guardou a vida numa gaveta, fechou-a à chave, e esqueceu-se dela. Mas a vida fez o que sempre faz, extravasou, transbordou, e levou tudo à sua frente. A mulher teve muita sorte, perdeu a casa, mas recebeu a vida de volta. [A moral desta história é muito importante: não viver a vida é tão perigoso como contrariá-la.]

 
22.10.03
 
I CHING

386. Table dance

Ela dizia sempre que não, apesar de o dizer muitas vezes com um sim no olhar. E, desta forma, alimentava-lhes o sonho e raramente perdia um cliente. [A moral desta história é muito comercial: o sonho é um crédito duradouro.]

387. Orelha de honra

Um homem mordeu a orelha a outro até lhe arrancar um bom pedaço. E não foi uma dentada de amor, ainda que excessivo e mordaz, mas de pura e simples raiva, pois de uma briga máscula e viril em defesa da honra se tratou. [É caso para dizer, vão-se as orelhas mas fique a honra.]

388. […]

O silêncio fala, mas afinal o que é o silêncio? O homem estava sentado, tranquilo, e pensava assim, mas na verdade os seus pensamentos nada eram senão uma brisa suave no silêncio do seu ser. [A moral desta história é barulhenta: estar em silêncio não é igual a estar calado.]

 
20.10.03
 
385. Sobretudo

Vestiu-se devagar, olhando-se no espelho, dando especial atenção ao conforto e às cores. E sobre tudo vestiu o sobretudo, sobretudo porque era um homem friorento, e o sobretudo era sobretudo uma peça de vestuário quente, ainda que pouco elegante. E dizia ele: sobretudo amo o meu sobretudo. [Era sobretudo isto!]

 
 
384. O uso faz o fuso

Não tem memória quem não se serve dela, diz o povo, e o povo tem sempre razão, mesmo quando sobre o mesmo assunto uma vezes diz sim e outras diz não. E quem diz memória diz imaginação, ou amor, porque a verdade é que a função faz o órgão. Nisto acreditou um homem, e todos os dias escrevia um texto em que em recordava, imaginava e nele colocava todo o seu amor. Chamava-lhes exercícios de ser, à falta de um nome melhor, e, até à sua morte, nunca deixou de os fazer. [Não sei se o seu nome era Jorge!]

 
19.10.03
 
ANTES E DEPOIS (II)

382. Antes...

"Quais são as palavras mais indesejadas? Caralho, cona, colhões, esporra, cagalhão, foder, cu, broche, minete?" Uma onda de indignação e nojo atravessou os rostos dos homens e mulheres sentados, deixando-os pálidos e ruborizados. "Guerra, fome, exploração, criminalidade, televisão, capitalismo, destruição, publicidade, democracia, eleições?" Todos riram muito e a tensão desanuviou-se.

383. Depois...

"Quais são as palavras mais indesejadas? Caralho, cona, colhões, esporra, cagalhão, foder, cu, broche, minete?" Isto disse o conferencista num silêncio pasmado, e depois parou. Uma onda de indignação e nojo atravessou os rostos dos homens e mulheres sentados, deixando-os ao mesmo tempo pálidos e ruborizados. Algumas senhoras tiveram chiliques, alguns homens levantaram-se irados. Mas depois de uma pequena pausa ele continuou a falar na mesma voz clara e pausada, como se nada se tivesse passado. "Guerra, fome, exploração, criminalidade, televisão, capitalismo, destruição, publicidade, democracia, eleições?" Todos riram muito e a tensão desanuviou-se completamente. [Um velho truque de orador experimentado!]

 
17.10.03
 
ANTES E DEPOIS

380. Antes...

Era uma vez um homem que toda a sua vida procurou as mais belas palavras. Procurou-as nas palavras dos poetas, dos cientistas e dos homens de fé, mas a sua busca nunca terminava porque encontrava sempre palavras mais belas que as anteriores. O que ele nunca descobriu, mas o leitor já deve ter suspeitado, é que as mais belas palavras são as que esperam dentro de nós para serem ditas no silêncio absoluto do verdadeiro ser. [E não lamente o leitor a sorte daquele homem: o que a ele aconteceu pode ser evitado. Esta é afinal a moral desta história.]

381. Depois...

Era uma vez um homem que toda a sua vida procurou as mais belas palavras. O que ele nunca descobriu é que as mais belas palavras são as que esperam dentro de nós para serem ditas no silêncio do verdadeiro ser. [Esta é afinal a moral desta pequena história.]
 
13.10.03
 
379. Mais dez

Cona da mãe aos saltos”, foram estas as exactas palavras do Evaristo quando recebeu a notícia de que o tinham destacado para a Cornualha. “Agora é vou perscrutar a solidão e posso dizer adeus a todo o prazer”, acrescentou, completamente obnubilado. Mas nos entrefolhos da noite a morte veio e levou-o fugaz. E não houve interstícios que lhe valessem. Pobre desgraçado. [ A moral desta história é clara: Quem diz palavrões é certo e sabido que no fim acaba mal!]
 
11.10.03
 
378. Mais dez palavras

Nada rasga mais o silêncio barulhento da noite do que o sussurro aflito de um besouro num ziguezague doido, como se tentasse contornar um muro que serpenteasse para sempre. Assim, desta maneira, sente cada um de nós o espinho que traz na alma, e só ele grita que a temos.
 
9.10.03
 
377. As dez mais belas palavras

O eu é uma luz, um mar, uma claridade azul que se derrama ao longo da linha que separa o ser do nada. Aí está o segredo para amar a vida em todo o seu esplendor. [Foi isto que um homem disse a si mesmo certo dia quando a alma lhe implorou por mais atenção.]
 
7.10.03
 
A3H

373.

Era uma vez um homem de palavra que tinha nisso muita honra. Quando dava a sua palavra era certo e sabido que a cumpria. Foi assim que deixou de beber, e cumpriu a sua palavra apesar de na altura se encontrar bêbado que nem um cacho. A partir daí tomou mais cuidado com o que dizia, isso é verdade, mas nunca deixou de cumprir a sua palavra uma vez dada.

374.

Ser honesto é difícil porque a maior parte do tempo nos enganamos a nós mesmos, mas não é impossível, basta aceitar que erramos e no entanto continuar a tentar acertar no alvo com determinação. Este fora o legado mais importante que o seu pai lhe deixara, e ele levou-o adiante, o que lhe causou algumas dificuldades na vida pois herdou também a sua profissão. [A moral desta história é categórica: todas as profissões são respeitáveis desde que desempenhadas com honestidade.]

375.

A sua única vaidade era a sua humildade, e tão bem a escondia que ninguém dava por isso, pela vaidade, que a humildade todos a viam a léguas. E por muitos anos assim foi, até que ele não conseguiu esconder mais a vaidade, e todos dela enfim se aperceberam. Nunca mais o consideraram humilde, embora ele nunca o tivesse deixado de ser. [A moral desta história é uma, ou talvez duas, sei lá eu disso!]

376.

Nem sei o que te diga, mas embora ainda te ame, acho que já não acredito no nosso amor, e acima dele desejo que sejamos amigos. Foi isto que ele lhe disse, pois embora não soubesse ao certo o que dizer, tinha o terrível vício da honestidade, e tentava sempre falar a verdade mesmo quando se enganava a si mesmo e aos outros. [A moral desta história é desonesta: a honestidade é uma virtude duvidosa.]

 
4.10.03
 
SORRISOS

371. (a mim mesmo)

Não sei o que diga, disse a lombriga. E perante isto também ele não soube o que dizer. Não sei se estão a ver, mas o que se diz a um verme que seguiu uma rima? Desculpe tê-lo invocado, eu não queria, estejas descansado, a culpa é da poesia? Talvez, quem sabe? Mas a verdade é que ficou calado, e a conversa não foi a qualquer lado. [Um sorriso amarelo]


372. (à Faíza)

Mergulhou na água como em si mesmo, completamente, esquecido de tudo e ao mesmo tempo desperto como nunca antes tinha estado. Aí permaneceu até não aguentar mais, e quando veio ao de cima sorriu como se fosse a primeira vez.
 
2.10.03
 
NADA MAIS

368.

No dia, hora e lugar combinado ele estava lá, preparado para o que desse e viesse. Ninguém veio, e nada aconteceu, mas ele estava lá, e por muito tempo ali ficou, até que se foi embora. [A moral desta história é vulgar: Não faltes à chamada, aconteça o que acontecer.]

369.

Alva, a luz flutuava lá no alto. E ele, imerso em sombras, subia até ela o seu olhar. [Nada mais.]

370.

Primeiro, vamos ser amigos - disse ele . - Depois, talvez já nada importe. Ela olhou-o com firmeza, e devolveu-lhe um sorriso cansado de esfinge. [Nada mais.]

 



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