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mil e uma pequenas histórias
28.2.03
 
177.

Quando lhe perguntaram se não achava mórbido escrever amiúde sobre a morte e, ainda por cima, divertir-se tanto com isso, como era seu costume, o escritor ficou por momentos em silêncio e o sorriso quase lhe morreu no rosto, mas a resposta veio com uma gargalhada, gostava de brincar com coisas sérias e a morte era uma galdéria que se prestava bem a isso. E estava a falar verdade, justiça lhe seja feita, que quem o conhecia bem sabia que só quando mentia ficava taciturno.

 
27.2.03
 
176.

Durante três meses esteve fechado em casa com a carne e os ossos daquele que tinha sido o seu dono. Quando finalmente a porta do apartamento se abriu, o cão saiu para a rua e por ali andou em loucas correrias até que foi abatido pela polícia. Ninguém na vizinhança se preocupara com o longo desaparecimento do homem, mas foram rápidos a censurar o comportamento do cão. [Há histórias que cheiram mal, mesmo muito mal.]
 
 
175.

A morte apanhou-o descalço, completamente desprevenido, mas uma coisa é certa, estivesse ele com calçado ligeiro e também não teria conseguido fugir dela.

174.

A morte ficava-lhe bem, acentuava-lhe a palidez do rosto e marmoreava-lhe os seios. Desejou-a ainda mais e foi assim que a recordou quando o executaram.

173.

Matou-se lentamente, muito lentamente, por isso, quando estava quase a chegar ao fim, teve que voltar ao início e matar-se de novo. Era um perfeccionista.

172.
Os seus últimos pensamentos foram para a mulher e para os filhos. Depois disso nunca mais voltou a pensar. Desde então a vida tem-lhe corrido muito melhor.

171.

Num momento estava vivo e noutro já estava morto. Nem teve tempo de pensar que a vida é como um interruptor, apagou-se de repente.
 
25.2.03
 
170.

Nem soube o que lhe aconteceu, sem um pio, morreu súbito. Ou talvez nunca estivesse estado vivo; interrogou-se o assassino, que era dado a dúvidas metafísicas.
 
24.2.03
 
169.

Uma cadeira, igual a todas as cadeiras daquela sala, decidiu certo dia não deixar que a voltassem a usar. A partir daí, sempre que alguma pessoa tentava sentar-se nela, logo ela dobrava uma das suas quatro pernas ao acaso, derrubando sem apelo nem agravo a infeliz, tudo isto perante o espanto das outras cadeiras. Passado pouco tempo, foi substituída à força e mandada abater por insubordinação. As outras lamentaram então a sua má sorte, nunca mais se iam divertir tanto. [A moral desta fábula é: o público deve apreciar o artista em vida. Ou outra.]
 
23.2.03
 
168.

Quando deixou de escrever, após uma carreira fulgurante, todos quiseram saber porquê. Leiam a minha obra, disse ele, e calou fundo a verdadeira razão. Nunca mais escreveu, e muitos anos passaram, mas o interesse pela sua obra aumentou e foi várias vezes reeditada sempre com sucesso. Por sua vontade expressa, todos os jornais publicaram, após a sua morte, uma pequena mensagem dirigida aos seus leitores. Não procurem na Literatura o que está dentro de vós.
 
21.2.03
 
167?

Encontrei há pouco um contador de histórias. Queixou-se que as histórias nunca estão quietas e, como se isso não bastasse, são, na maior parte dos casos, demasiado pequenas ou demasiado grandes, circunstâncias que dificultavam sobremaneira o seu trabalho. Pareceu-me um homem irremediavelmente triste e desanimado.

Algumas histórias são tão miúdas que passam despercebidas até a um olhar treinado e experiente. Por isto se diz que é fácil contar pequenas histórias, mas primeiro é preciso encontrá-las.

As histórias só estão verdadeiramente contadas quando acabam, e algumas são enormes, tão grandes que seriam precisas várias gerações de contadores para completar a tarefa.

Que diferença fará se as histórias não forem contadas? Só assim existirão? Talvez aconteçam apenas, e a contagem seja irrelevante!

Como não sabia o que dizer-lhe, limitei-me a escutá-lo com atenção e simpatia. Mas já estava a pensar como poderia contar esta história aqui. Não cheguei ainda a qualquer conclusão.
 
20.2.03
 
166.

Pegou numa palavra vulgar, extraiu-lhe significados uns atrás dos outros até ficar exangue, depurou-os depois num texto esquisito, serviu-o por fim acompanhado de vinho novo. [Programar é suportar e desejar a imensidade do espaço aéreo.]

165.

Estava silencioso, mas corria em todas as direcções. Estava lívido, mas gorgolejava profundamente. Estava hirto, mas as suas cuecas eram cor-de-rosa. Estava morto, mas falava pelos cotovelos. As pessoas que ali tinham acorrido começaram a comentar entre si que não o acompanhariam a casa se ele continuasse a não se comportar com todo o decoro que a situação exigia. Como ele persistisse, escreveram uma carta de protesto que todos assinaram e lhe entregaram em mão. Depois foram-se embora e deixaram-no finalmente só. Ele não se importou nem um bocadinho. Continuou morto, mas cheio de vida. Era um cadáver muito esquisito.
 
18.2.03
 
164.

PORQUÊ FALAR? Disse isto e calou-se. Mas no silêncio a pergunta repetida continuou a responder-lhe.

163.

Sozinha em si mesma, caminhava sem rumo nem destino. Absorta, não via que o caminho crescia debaixo dos seus próprios passos. A realidade estava virada do avesso e o interior e o exterior confundiam-se; todos os caminhos só podiam ir dar a si mesma e fora de si. As palavras tinham-se calado e o silêncio falava. Que mais podia ela fazer senão ir a direito?
 
16.2.03
 
162.

Há um tempo para calar e um tempo para falar. Quem diz falar, diz escrever. Umas vezes escreve-se demasiado e outras não se escreve o suficiente. Escreve mal não só quem escreve de mais mas também quem escreve de menos. [Neste ponto o homem deixou de escrever e ficou à escuta, mas o seu calar nada lhe disse. Continuou então.] Para escrever é preciso ouvir o mais íntimo do nosso ser, mas, quando escrevemos, logo esse mesmo ser se dissipa em miríades de palavras ocas. Escrever ou não escrever não é uma opção. É como respirar: um só movimento. [Parou finalmente e refugiou-se no silêncio.]
 
14.2.03
 
161.

Deitou-se loura e acordou morena, ou talvez tenha sido ao contrário, isso não interessa, o importante é que acordou diferente, mudada. Ficou muito aflita e preocupada, as pessoas iam notar e comentar a sua transformação. O que lhes diria? Que explicação avançaria? E o que ia vestir? O seu guarda-roupa de nada lhe servia agora! Que desgraça!! Tinha mudado, sim, tinha mudado, mas no seu interior permanecia a mesma pessoa.

160.

A última vez que o vi não cortava ele o cabelo e a barba há muitos anos, talvez há tantos quantos os que não nos víamos, e eram mesmo muitos. Apesar de ser ainda jovem e ter herdado do pai o próspero negócio da família, parecia um velho vagabundo. Para meu espanto, reconheceu-me de imediato. Trocámos cumprimentos de circunstância e seguimos cada um o seu caminho. Agora soube que morreu. E que tinha cortado o cabelo. Foi assim que me contaram. Morreu. Tinha cortado o cabelo. Não quis saber mais nada, mas fiquei a pensar se teria também cortado a barba e, sabe-se lá, passado a andar de fato e gravata. Há coisas que é melhor não saber, só dessa forma todas as possibilidades se podem manter em aberto.

159.

A minha filha anda muito entusiasmada com tudo o que tem a ver com a escrita e com a leitura. Um destes dias, perguntou-me se eu conhecia a família do bê. Fiquei surpreso e pensativo. [Talvez o abecedário fosse uma família, ou mesmo cada palavra por si mesma o fosse, com excepção, é claro, das raras palavras solitárias. Seguindo este raciocínio pude encontrar casais, famílias reduzidas, numerosas, unidas e divididas.] Mas já ela me explicava na sua voz pequena e álacre: bá,bé,bi,bó,bu. É a família do bê. Gosto muito dela.
 
13.2.03
 
158.

Aqui e agora, eu e tu temos encontro marcado. Neste texto, eu o autor e tu o leitor cumprimentamo-nos (Olá, como estás? Estou bem, e tu? Bem, muito obrigado? Eu também.) e confundimo-nos: eu sou tu e tu és eu e os dois somos tu e eu. Não estamos sós! Também está aqui uma terceira pessoa: o editor. Não o ignoremos! Temos então autor, leitor e editor todos juntos num texto. Um texto onde aquele que chega é, ao mesmo tempo, um potencial autor, leitor e editor. Quem julgaria isto possível? Viva o texto, viva o hipertexto. Viva todos nós!
 
11.2.03
 
157.

Sentia-se exausto e a precisar de repouso urgente, mas o seu corpo não se entendia e ele não conseguia alterar o estado das coisas. Quando se deitava acontecia-lhe sempre o mesmo, adormecia aos poucos e, da mesma forma, também assim acordava, pelo que nunca adormecia ou acordava completamente. Primeiro adormecia um dedo, um dedo qualquer, depois uma mão ou um pé, depois os cabelos, mas por essa altura já aquele dedo acordava, e um ombro adormecia... e por aí adiante. O seu corpo estava doente e a sua mente também.
 
 
156.

Nunca ficava muito tempo no mesmo sítio. Como certas pessoas que estão sempre a mudar de emprego, de casa, de cidade e até de país, também ele girava sobre si mesmo várias vezes antes de aquietar e partir de novo. Era um cão pervagante, grande e negro, meigo e inquieto. Foi ontem atropelado e morreu. Vou ter muitas saudades dele.
 
7.2.03
 
155.

Acordou já a manhã ia tarde, sorumbático, macambúzio, estranhamente por razões que não conseguia encontrar, nem objectivas (a vida não lhe corria pior do que o costume, o que era bom ainda que o costume fosse mau), nem culturais (era um país triste aquele em que vivia, mas o clima era bom). Ainda sentia na boca o sabor do bife mal passado e dos ovos de aviário do jantar. Era isso, concluiu triunfante, só podia estar assim por razões químicas. A partir desse dia passou a evitar alimentos tristes ou melancólicos de qualquer espécie.
 
6.2.03
 
154.

No início os pontos formavam uma linha intermitente que se estendia a perder de vista. Durante vários dias seriam sujeitos a muitas provas e todos dariam o seu melhor. Os primeiros excluídos, por razões óbvias, foram os que se mostraram incapazes de conter exclamações e interrogações. Os que se agruparam com outros pontos ou não resistiram ao encanto das virgulas foram os seguintes. Mas ainda a procissão ia no adro, e de entre os pontos que restavam, todos eles solitários e orgulhosos, só um deixaria os parágrafos para trás e fecharia o texto, sendo então aclamado como o .
 
5.2.03
 
153.

O meu filho, que está na idade dos porquês, perguntou-me um destes dias por que é que os aviões não têm asas bonitas como as das borboletas. Sorri com a sua ingénua sabedoria e, de repente, vi com uma alucinante nitidez um mundo triste e cinzento onde a exuberância da Natureza já não tinha lugar. Esta visão inesperada abalou-me profundamente. O meu filho continuava à espera. Felizmente a resposta era simples. Usa a tua imaginação!

152.

O Antes, o Durante e o Depois eram companheiros inseparáveis, mas um dia o Antes e o Depois zangaram-se, não se sabe bem porquê, e foi cada um para seu lado, deixando o Durante triste e abandonado. O Durante procurou-os por todo o lado sem descanso, mas o Antes mudara-se para um lugar a que chamou Passado e o Depois para outro a que chamou Futuro, e tão longe ficaram um do outro e de forma tão equidistante se posicionaram que o Durante desistiu finalmente de os procurar. A minha avó contou-me esta história que sempre recordarei como se fosse hoje.
 
4.2.03
 
151.

O homem sentou-se no banco corrido com a cabeça descaída, o queixo quase tocando no peito, as mãos a agarrar os joelhos, e os olhos semicerrados. Era magro, tinha já ultrapassado os cinquenta anos, e adivinhava-se nele uma elegância negligente que devia ser a sua característica dominante. Onde quer que estivesse seria sempre ele. O juiz olhou-o do alto e ordenou ao réu que se levantasse. A voz soou como se não pertencesse a ninguém da sala, tão estranhas foram as palavras e a imobilidade do homem: Levante-se você, seu filho da puta! — foi a resposta. O magistrado ergueu-se de um salto e debruçou-se para o homem que continuava sentado, inalterado, a não ser um brando sorriso que lhe brilhava agora nos olhos da alma.
 



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