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mil e uma pequenas histórias
30.9.03
 
367. (ao Silêncio)

Sentiu uma imperiosa necessidade de ter uma conversa muito séria consigo mesmo; o problema foi que estava completamente à margem de si, e por ora nada havia que pudesse fazer. Mas com o tempo tudo se resolveu da melhor maneira, e pôde reencontrar finalmente o seu centro. Foi aí que se encontrou consigo próprio, viu-se cara a cara, e soube de novo quem afinal era. [A moral desta história é só uma: Há sempre um ponto de encontro onde nos podemos ver face a face.]
 
27.9.03
 
366. Aqui
 
26.9.03
 
Era uma vez...

365.


O calendário dizia-lhe que havia passado um ano, mas ele não estava convencido, e tinha a sensação de que não tinha ainda chegado a altura de celebrar a renovação, porque o tempo passa tanto mais devagar quanto mais intensamente pensamos, e fora isso que lhe acontecera naqueles dias. Mas chegou finalmente o instante em que sentiu a chamada da eternidade, e o tempo começou de novo a correr para ele. O tempo tem destas coisas!
 
 
364. Vida de porco



Vivia e pensava tal e qual um porco. Comia, dormia, rebolava-se, passeava; fazia as mesmas coisas que todos os outros. Às vezes até pensava, como todos os outros. Vivia sem quaisquer propósitos ou ideais, e aceitava passivamente o seu destino. Mas ele era um porco, era mesmo um porco, e levava uma vida de porco, a única que podia. O que é triste é que o homem médio leve ele próprio uma vida sem entusiasmo.


 
25.9.03
 
mais três pequenas histórias aqui
 
 
360. BIS

Certo dia uma mulher pensou que se não podia mudar o mundo talvez pudesse mudar-se a si mesma. E se não podia acabar com a tristeza no mundo talvez pudesse viver nele em alegria. Quem sabe, pensou ainda ela, talvez mudando-se a si mesma o mundo mudasse com ela. E foi isso que ela fez, passou a viver com um sorriso, e desta forma mudou para sempre o seu mundo.
 
24.9.03
 
359. (à Heloísa)



Era um homem doce e carinhoso, mas essa faceta escondia um monstro. E se era de facto um monstro, a verdade é que essa faceta escondia um homem doce e carinhoso. O seu problema era que ele era uma e outra coisa, e o bem e o mal estavam nele rudemente separados, isto foi o que lhe disse uma das suas vítimas, e deixou-o a pensar. Mas não teve sorte nenhuma e veio a morrer às suas mãos, apesar de pela primeira vez o ter deixado vacilante sobre a ténue linha dos seus contrastes. Depois enterrou-a e rezou por ela.
 
21.9.03
 
358. (à Amália)

Ela não aguentava mais, foi isto que lhe disse, e a afirmação continha uma pergunta. Ele não soube o que lhe responder, ou talvez soubesse bem demais que as suas palavras de nada serviriam se ela não as repetisse com a sua voz, mas falou, falou que se tem de aprender a aceitar o que não podemos solucionar, que devemos viver com pouco peso na alma, que o prazer faz sempre fronteira com a dor, e o desespero com a esperança. Ela escutou-o sorrindo, o sorriso mais triste e mais belo que ele alguma vez tinha visto. E sentiram-se felizes...
 
 
357.

Era uma vez um homem que nunca ria. Também nunca chorava. O seu coração parecia uma ameixa seca. Um dia olhou-se com atenção ao espelho, bem para dentro de si, e riu, e chorou, e chorou de tanto rir e riu de tanto chorar. A partir daí nunca mais foi o mesmo, dizem alguns que ficou taralhouco, e ria e chorava sem motivo aparente, e outros que se tornou uma pessoa excepcional. Verdade indiscutível é que viveu uma vida longa e nunca teve problemas cardíacos. [A moral desta história é simples: viver com o coração dá saúde e faz crescer.]

 
18.9.03
 
356. Hein!

Perguntaram certo dia a um escritor o que pensava das suas histórias, ao que ele respondeu que eram como buracos num muro e calou-se. Buracos que permitem olhar para o mundo fora de nós? Buracos por onde podemos espreitar para dentro de nós mesmos, ou não sabe que os muros têm sempre dois lados de cá? — esclareceu ele numa voz firme e clara. Qualquer muro tem dois lados de cá, ou será que estamos sempre dos dois lados do muro? — isto pensou o escritor, mas não o disse. Desde pequeno que tinha muitas dificuldades com o dentro e o fora.
 
17.9.03
 
355.

No dia do seu funeral compareceu no cemitério como se não fosse nada com ele, e foi preciso a Morte ela mesma lhe acenar de dentro do caixão para que ele finalmente se decidisse a colaborar. [A moral desta pequena história não traz novidade alguma: Por mais que alguém ame a vida sempre acabará por sucumbir aos encantos da morte.]
 
15.9.03
 
354.

Era uma vez um homem que nunca vivera, e quando soube já estava morto.[Uma pequena história é lida por qualquer um que a possa ler. Assim também a vida pode ser vivida por qualquer um que a possa viver. E se para ler é preciso saber, o mesmo acontece para viver. Mas para viver é não só preciso saber, como esquecer muito do que se viveu.] A sorte dele foi que a morte lhe trouxe um esquecimento tão profundo que acreditou estar vivo, e assim teve ainda uma derradeira oportunidade de aprender tudo o que há a aprender sobre viver.
 
13.9.03
 
LIÇÕES EM SI

349.

Depois de um longo e fastidioso período de espera, o mestre aceitou-o finalmente como aluno. Nos anos que se seguiram, aprendeu a estar em silêncio e a sorrir, e mais nada lhe pareceu tão importante quanto isso. Quando o mestre morreu, tomou o seu lugar.

350.

Percebeu de repente que nada mais era do que uma ténue voz, e que para a ouvir bastava calar as outras vozes que nada mais eram do que ruído. A voz que ficava quando todas as outras se calavam, era afinal ele, mas mal conseguia isso e logo todas as outras vozes voltavam num alarido.

351.

Tudo o que não dizia era afinal tudo o que queria dizer mas não conseguia, pois mal o dizia logo deixava de ser aquilo que queria. Se ficasse calado e escutasse com atenção, conseguia ouvir o que queria dizer, ao longe, muito ao longe, não mais do que isso. [Talvez a verdade sobre nós mesmos seja pessoal e intransmissível, é o que se pode concluir.]

352.

Certo dia um homem muito velho e muito sábio concluiu que quanto menos pensava sobre o seu ser mais se aproximava dele, e quanto mais se aproximava dele menos vontade tinha de pensar sobre ele. Amava vividamente os paradoxos e por isso não admira que a proximidade da morte lhe prolongasse a vida, deixando-o ao mesmo tempo triste e feliz. Era assim a sua natureza e ele nada podia fazer.

353.

Era uma vez um homem que adormecera em todas aulas em que estivera e nunca aprendera uma lição que fosse, a não ser que não precisava de mestres que nada sabem a não ser o que repetem sem descanso. Ele sabia muito pouco, quase nada, e na verdade não queria saber mais, tinha medo de se esquecer de quem era, e isso era tudo, mas mesmo tudo, o que lhe interessava saber, e nada mais.

 
5.9.03
 
348. Moto continuo

Procurou-se em todo o lado e em nenhum lado se encontrou. Mas como se poderia ter encontrado se não parava de se procurar? A verdade é que um dia parou e encontrou-se finalmente. Mas o que viu só ele podia dizer e, tanto quanto sei, nunca o disse a ninguém. Entretanto mudou, hoje já não é quem então foi, e procura-se de novo com todas as forças do seu ser.
 
4.9.03
 
347. Ler-se (à Mara)

Não há coincidências a não ser na nossa cabeça, disse ela a si mesma depois de acabar de ler o livro a que dera toda a sua atenção nas últimas semanas. Sentia-se outra pessoa, e tinha a certeza que se tinha mesmo tornado em alguém que não era antes. Mas não perdeu nem mais um instante a pensar nisso, reabriu o livro na primeira página e foi por ele adiante. Sabe-se lá onde chegaria dessa vez! [A moral desta história é coincidente consigo. Se foi bom ler, leia de novo.Torne-se um leitor sério, tire todo o prazer da leitura.]
 
3.9.03
 
346. Ficção e realidade

Era uma vez um homem que preferia a ficção à realidade: acreditava que a vida imaginada dos romances era melhor, muito mais bonita e diversa, muito mais compreensível e perfeita. O mundo é malfeito, a literatura lembra-nos que o mundo é mal feito e que poderia ser melhor, dizia ele. Estava muito enganado. O que a literatura nos revela é que o homem vê muito melhor quando vê com os olhos da imaginação e do sonho. Viveu para sempre pela metade, pobre coitado, melhor teria sido que não tivesse feito nenhuma distinção e tudo tivesse visto com os mesmos olhos.
 



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... a ficção no seu mínimo...

Luís Ene

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