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mil e uma pequenas histórias
11.10.02
 
53.

A linha não tinha uma cor definida. Brilhava, sim, brilhava, mas era impossível dizer se era azul, ou cinzenta, ou outra cor qualquer. Até o brilho era estranho, quase se diria baço, antigo. Também não se avistava um começo ou um final, estendia-se para além do olhar, e não era recta, embora a sua curvatura, se é que a tinha, não era fixa, antes parecendo ondular, ou tremer. Tão singular era, capaz talvez de iludir os sentidos. Não tinha odor, ou pelo menos não o senti, e embora parecesse zumbir, não ouvia qualquer som. Tentei tocá-la, tentei aproximar-me dela, mas não consegui, parecia estar sempre à mesma distância. Sustive a respiração e saltei, repentinamente, para além dela. Consegui, estava para lá da linha. Caminhei um pouco, avançando no novo território com alguma cautela. Quando olhei para trás, ela já não estava ali, tinha desaparecido, estava perdido. Compreendera de repente que aquela não era outra senão a linha que separa a normalidade da loucura, ténue e inconstante fronteira entre dois mundos, armadilha sem retorno para os incautos e outros tolos menores. Tentei manter o sangue frio; primeiro, olhei em todas as direcções a confirmar o seu desaparecimento, depois passei em revista os objectos que tinha comigo. No bolso interior esquerdo do casaco encontrei a minha inseparável caneta azul celeste; com ela tracei uma nova linha, à imagem da outra, e atravessei-a. Respirei fundo, tinha conseguido regressar, ao lado de cá.

52.

A nódoa era pequena, nítida e delimitada. Julgou que desapareceria após uma simples lavagem na máquina, com um detergente normal, em água fria, mas não, ainda estava lá, pequena, nítida, delimitada e teimosa. Nova lavagem, agora a 40.º graus, e nada, nada de resultados, melhor será dizer, porque a nódoa permanecia inalterada. Tira nódoas, detergente localizado, sei lá que mais, mais uma e outra vez, sem efeito. Por último esfregou-a à mão, com vigor, com raiva, com desespero, várias vezes. A nódoa persistia, pequena, nítida, delimitada, invencível. Sentou-se à sua frente, olhando-a fixamente, à espera de inspiração. A nódoa não ia sair, isso era uma certeza. Queria ele viver com a alma maculada, irremediavelmente manchada? — esta era a pergunta que devia fazer a si mesmo. Fê-la, e decidiu que não. Queria viver, sim, mas não assim. Só lhe restava uma solução: tornou-se materialista e deitou fora a alma que de nada lhe servia, agora.

51.

A mancha começou por ser pequena, como tudo que nasce e se desenvolve, antes de ser grande, muito grande, imensa. As perguntas habituais continuam, no seu caso, sem resposta. Onde apareceu? Não se sabe; parece que terá surgido um pouco por toda a parte, ao mesmo tempo. Quem a propagou? Desconhece-se; revelou-se por igual em seres animados e inanimados, propagou-se sem restrições, sôfrega. Como se transmitiu? Ignora-se; cresceu sem mais, como óleo no mar, como uma doença de pele, como tinta entornada, pequenas manchas que se foram juntando, unindo, até existir uma mancha apenas, cobrindo tudo como uma sombra, cinzenta, baça, fria. Tudo isto demorou pouco tempo — para ser rigoroso, exactamente trinta e dois dias, quatro horas e cinquenta e um minutos —, deixando toda a comunidade científica às aranhas. Dez anos passados de exaustivas pesquisas, consegui-se uma primeira vitória, introduzir cor na mancha, um azul bebé que se estendeu num ápice por toda a Terra, devolvendo-lhe o antigo título de “planeta azul”.

50.

No exacto dia em que fez dezoito anos, mais precisamente no final do almoço de aniversário, o pai desejou-lhe muitas felicidades e convidou-o a sair de casa, imediatamente, era tempo de viver a sua vida, já era um homem feito, com tudo o que isso implicava de direitos e deveres. Agradeceu ao pai, tudo o que tinha feito por ele, e saiu sem mais demoras nem bagagem. Não lhe guardou ódio ou rancor; vinte anos depois, quando o pai morreu, depois de lhe ter sido diagnosticada uma doença terminal, foi ele o único que esteve ao seu lado, mesmo até ao fim, ajustando-lhe a almofada, contra o rosto. Todos os anos, por altura do aniversário da sua morte, leva-lhe flores à campa rasa e sorri, mansamente.

49.

Vivia longe, há já vários anos, mais de cinco, situação que não procurou, antes lhe aconteceu, como tudo na sua vida, desde o nascimento na miséria — mas quem é que escolhe as circuntâncias em que nasce? —, passando pelo precoce abandono escolar a par da inevitável e imediata entrada no mundo do trabalho indiferenciado — mas quantos podem determinar o seu lugar na sociedade? —, terminando, para nada mais referir, nos sucessivos desaires amorosos — mas existirá alguém que possa dominar o amor, moldá-lo ao seu desejo? Vivia longe, longe de tudo o que sempre o perturbara, o incomodara, o levara a desejar, algumas vezes, nunca ter nascido, nunca ter vivido. Vivia por toda a cidade, na baixa, nas ruas, debaixo dos aquedutos, onde calhasse, ausente, excluído, conformado.

48.

Quando o começavam a interpelar, com um desculpe preambular, ou de outra qualquer forma, ou mesmo apenas quando lhe dirigiam a palavra, respondia logo que não, a resposta era não, mas nunca deixava de acrescentar “mas qual é a pergunta?” Detestava responder ao que quer que fosse, detestava colaborar com quer que fosse, mas era curioso, à negação seguia-se sempre a interrogação, caminho inverso e invulgar, pois normalmente primeiro vem a interrogação e só depois a negação. No seu caso o não não era uma resposta mas uma recusa de resposta, profunda, filosófica; não, não queria, mas depois a curiosidade vencia-o e cedia ao desejo de saber a pergunta. Assim aconteceu quando a morte o abordou, apenas ela tinha aberto a boca, ainda nenhum som se soltara dela, já ele dizia não, não, mas logo a seguir, qual é a pergunta? Queres continuar a viver? — disse a morte — Era esta a pergunta, e aceito respostas antecipadas, que o tempo é curto e o trabalho muito. “Não”, gritou ele, “não”, mas de nada serviu, à sua resposta a morte juntou nova pergunta: Queres dizer mais alguma coisa? — e levou-o consigo, de imediato, que a morte é ardilosa e trocista, mas não brinca em serviço. (Não digas não se podias dizer sim.)
 



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