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mil e uma pequenas histórias
28.10.02
 
70.

Um homem de vinte anos vandalizou quarenta e sete viaturas num percurso de pouco mais de quinhentos metros, tendo acabado por ser detido em flagrante delito pela polícia. Na ocasião afirmou, serenamente, que era um anjo caído do céu; estava descalço e era belo, mas não acreditaram nele; não tinha asas e, para além disso, é certo e sabido que é muito duvidosa a existência dos anjos. Perguntaram-lhe porque partira os vidros e os espelhos, respondeu que se deixara fascinar pelo mistério do som multiplicado. Quando começou a subir na vertical, lenta e inexoravelmente, como um balão honesto, os policias olharam surpresos para cima, para além dele, à procura de uma explicação; um deles disparou então um tiro de aviso, para o ar, que lhe acertou em cheio no coração, a ascensão interrompida, o corpo precipitado no solo com um espasmo, onde se quedou inerte. Afinal, contas feitas, era apenas um homem, que os anjos, esses, são puro espírito e não vêm mencionados em relatórios da Amnistia Internacional como vítimas da violência policial; estão decididamente acima dessas coisas.

69.

Quando chegou a casa, à hora a que sempre chegava, habitualmente, encontrou a mulher e o seu melhor amigo deitados no tapete de Arraiolos da sala. Reparou que a mesa rectangular de tampo de mámore rosa tinha sido afastada e a lareira estava acesa. Ainda vestidos, as roupas descompostas apenas o suficiente para permitir a consumação do acto, não deram por ele. Sentou-se no sofá e olhou para a televisão: o homem e a mulher rolaram no chão e trocaram de posição, ele penetrando-o agora por detrás, ela ondulando o corpo ao seu encontro. Estavam tão perto dele que bastaria estender a mão para lhes tocar. Agora gemiam num uníssono cada vez mais acelerado, interrompido súbitamente por um excitado locutor anunciando um suicídio, pela primeira vez, em directo na televisão: do nono andar de um prédio de apartamentos onde vivia com a sua mulher, um homem precipitara-se para o vazio e para a fama, póstuma.

68.

Naquele dia todas as árvores da cidade velha amanheceram enlutadas. Fitas negras cingiam-lhes os troncos, com elegância, e as suas pontas, soltas, pendiam como estranhos e amargos frutos. As pessoas interrogaram-se, de imediato, sobre o motivo de tão singular repetição; mas só quando as árvores começaram a andar, convergindo lenta mas decididamente para a praça principal, interrompendo o trânsito e lançando a confusão nas ruas, é que se espalhou a convicção de que se tratava de um acto de protesto. A inquietação assaltou toda a gente e, no momento em que ao rumor do vento na folhagem se sobrepôs o fragor crescente das palavras de ordem, o medo instalou-se. A polícia e o exército, chamados a intervir, chegaram à praça dispostos a dispersar por todos os meios a manifestação, mas as árvores fincaram as raízes bem fundo, rompendo sem custo a calçada portuguesa, e nada as arrancou daquele lugar. Um ano depois ainda lá estavam todas, dominando a praça agora denominada Praça Verde e invadida por centenas de espantados ecoturistas vindos de todas as partes do mundo, mas tinham-se calado há muito, e poucas se lembravam ainda do dia em que ali tinham chegado em luta.
 



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