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mil e uma pequenas histórias
14.10.02
 
56.

Naquele dia o candidato apertou a mão a duzentos e cinquenta e sete homens, beijou trezentas e oitenta e quatro mulheres e crianças, abraçou indiscriminadamente trinta e um indivíduos de ambos os sexos, independentemente da raça, credo ou convicção política, e a todos eles dirigiu uma breve saudação ou comentário mais ou menos espirituoso mas sempre adequado, incitando ao voto, vendendo a imagem da vitória. Numa semana apertara a mão a mais de mil e quinhentos homens e beijara aproximadamente duas mil e oitocentas mulheres e crianças, para além de não menos de duzentos e vinte abraços, num total de outros tantas saudações e comentários. Não admira pois que a certa altura se tenha confundido e beijado um homem, abraçado uma mulher e apertado a mão a uma criança. Foi a morte do artista, por assim dizer, perdeu as eleições — por uma elevada margem — e viu-se forçado a abandonar para sempre a política, perante as acusações — largamente difundidas pelos media — de homossexualidade, assédio sexual e maus tratos a menores.

55.

Matou a mulher sem intenção, só à quarta facada percebeu que ela podia morrer, os seguintes trinta e seis golpes foram desferidos por puro desespero, logo que se acalmou telefonou a chamar uma ambulância. Foi o que declarou sob juramento em tribunal, no próprio dia do julgamento, o discurso entrecortado por um choro convulsivo. Os juizes foram compreensivos, afinal de contas o homem estava arrependido e a mulher morta, são coisas que acontecem, enterrados os mortos é preciso cuidar dos vivos. A sentença, modelo de lucidez e sabedoria, condenou o réu a escrever, à mão, três mil e seiscentas vezes — em substituição de igual tempo de prisão efectiva —, “eu não volto a brincar com facas”. Interposto recurso da decisão, alegando-se que a pena era cruel e humilhante, veio o Supremo a dar-lhe provimento, em parte: a pena mantinha-se, mas podia ser cumprida ao computador.

54.

Não sabia que o era até ter lido a palavra e o seu significado. Nunca a tinha ouvido, nunca a tinha lido, poderia ter passado toda a sua vida sem nunca a ter encontrado. E no entanto a palavra servia-lhe como um fato usado, às mil maravilhas. Descobriu-a por acaso, ao abrir um dicionário, na letra d, mais precisamente, ao topo, na coluna da direita, numa página às tantas ímpar, leu deturbar, sim deturbar e não deturpar, essa estava duas entradas abaixo, e perturbou-se, deturbou-se, contrariado, deturbado, mas ainda ficaria pior quando, depois de ter ignorado Deus, quatro entradas depois de deturpar, o rosto deturpado, agora sim, deparou então, mais abaixo, quase ao fim da página, com a palavra que lhe assentava como uma luva exótica. Claro que primeiro só lhe chamou a atenção a sua sonoridade esquisita. Leu-a, com dificuldade, soletrando-a, medindo-a, tentando decidir se gostava ou não dela. Só depois consultou o seu significado. Espantoso, aquela palavra designava-o, aquela estranha e no entanto familiar palavra falava de si; como poderia não ter ficado deturbado com aquele surpreendente encontro. Afinal não é todos os dias que alguém sabe que é deuterógamo, mesmo que já o fosse.
 



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Luís Ene

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