mil e uma pequenas histórias
438. Uma e a mesma coisa
Existem histórias, sempre assim foi e sempre assim será enquanto o homem existir, mil e uma histórias sem fim contadas desde que o homem é homem, e, por mais diferentes que pareçam, são afinal as mesmas histórias de sempre, porque se os homens e os tempos mudam, e as histórias tomam diferentes aspectos, nunca elas deixam de trazer em si a universalidade primordial que é a sua razão de existir. Isto escreveu um homem, um contador de histórias, que tudo é afinal o mesmo ainda que pareça o contrário. [A vida e a ficção são uma e a mesma coisa.]
437.
A literatura é a minha religião, disse o homem, e não sentiu em si qualquer necessidade de invocar um ou mais deuses. E, como tantas outras vezes, sentiu que aquela era uma afirmação que tudo explicava sem nada explicar, pairando inútil entre o sonho e a realidade. Repetiu a medo a frase, e, por breves instantes, como acontecia nessas ocasiões, viu as suas palavras riscarem de sonho a realidade, como o vôo errante da borboleta de asas tingidas de azul vibrante que sempre recordava, acordado ou a dormir. [A moral desta pequena história é paradoxal: não acreditar é também acreditar.],
436. A sabedoria
Atena nasceu adulta e sem mãe, preparada para a guerra. Foi isto que um homem leu, com espanto, e por muito tempo ficou a pensar nessa criatura sem colo de mãe e sem infância onde regressar, tendo como seu único refúgio a sabedoria. Sim, porque afinal ela a deusa da sabedoria, e de tudo tinha um profundo conhecimento, até de si mesma. Pobre deusa, tão frágil e poderosa, disse o homem em voz lamentosa, tocado subitamente por uma pungente e sábia dor. [A moral desta história é muito vaga e confusa: O saber tem o seu lugar... e nada mais.]
435.
Flan, o doce
Flan, o pudim, há muito que desejava completar-se, tornar-se um só, único e inconfundível, afastando assim de vez a intranquilidade do seu ser. Todos achavam que a sua busca chegara ao fim, faltava-lhe apenas escolher entre a flamejante beleza da cereja e a rugosa sabedoria da ameixa seca, mas a verdade é que por mais que se esforçasse não se decidia: hesitava, hesitava sempre, estremecendo sem parar, que era a sua forma mais profunda de pensamento. É claro que acabou por ter a sorte dos mais indecisos, veio a vida e engoliu-o com deleite, só lhe deixando os olhinhos para chorar.
434. Tropical
Certo homem sabia que vivia mesmo quando não escrevia sobre isso, e sabia também que quando escrevia vivia um pouco mais, e isto porque a realidade existe e é possível sonhá-la. E, enquanto assim escrevia, o homem olhou o suco de abacaxi com hortelã, e logo o escreveu e leu ali mesmo. Mas embora fosse bom fazê-lo, a verdade é que era muito melhor bebê-lo, e foi o que ele fez. Bebeu um longo gole daquela bebida leitosa e perfumada, e suspirou de prazer. [A moral desta história é bastante simples: Quem tem pouca imaginação deve viver plenamente a realidade.]
433. Da vida
De um lado a luz, do outro a escuridão. De um lado a realidade, do outro o sonho. Entre eles um homem segue em frente, sem hesitar, num estreito caminho de sombras difusas que se prolonga a perder de vista. Ele sabe que aquele não é um caminho vulgar, não é um caminho qualquer, é o seu próprio caminho, pessoal e intransmissível, que o levará onde ele tiver de ser levado, sabe-se lá onde! Mas continua a avançar, porque é assim que tem de ser. [A moral desta história é incontornável: A vida é um caminho que é preciso percorrer.]
432. Da certeza
A morte é certa, diz-se, e esta seria a única certeza, mas um homem pensou um dia de forma diferente, e concluiu que estar vivo era a sua única certeza, e a partir daí nunca mais pensou na morte, e vivia feliz e despreocupado. Mas a Morte, ao saber desse insólito, apressou-se a ir ter com ele. O homem recebeu-a cordialmente, ofereceu-lhe chá de maça e canela e bolinhos de gengibre, e durante muito tempo falaram de mil e uma coisas. E quando ele afinal lhe perguntou se estava na hora, ela respondeu-lhe ainda não, despediu-se, e saiu quase feliz.

431. Uma andorinha (ao JCF)
Se é do conhecimento de todos que uma andorinha não faz a Primavera, o que talvez não saibam é que há uma andorinha que faz o Inverno, e tem muito orgulho nisso. Ela bem sabe que é vista com desprezo por ser diferente das outras, pois quando todas as andorinhas se vão, só ela fica. E talvez isto possa parecer estranho, mas a verdade é que ela não gosta mesmo nada de viajar, e prefere de longe passar o Inverno no quentinho, à lareira, a beber enormes cálices aquecidos de aguardente velha e a ler um bom livro. Chamem-lhe parva!
430. Zangado com a Vida (ao Fernando Esteves Pinto)
Era uma vez um homem que estava muito, muito zangado com a Vida, e demonstrava-o em tudo o que fazia, dia após dia. Talvez por isso, ou talvez não, vá-se lá saber, a verdade é que a Vida estava igualmente zangada com ele, e desta forma os dois mantinham há muito uma acesa e fastidiosa rixa que parecia não ter fim. Mas a Morte, por piedade, resolveu intervir, e levar o infeliz para junto dela, pondo termo ao seu sofrimento de uma vez por todas. [A moral desta história escapou de uma velha canção: Antes a morte que tal sorte.]
429. Dom Camaleão
Não se conhecem fábulas ou outras histórias sobre camaleões, e isto incomoda bastante Dom Camaleão. Chamar-se camaleões aos sujeitos que mudam de cor política também não ajudou nada à festa. É que Dom Camaleão orgulha-se da sua body art adaptativa, e sabe que daí se tirariam importantes moralidades, ou não estivesse a adaptação no próprio centro da Vida. Chegou mesmo a contactar um escritor para que escrevesse sobre ele, mas se aquele prometeu o certo é que não o fez. E Dom Camaleão está cada vez mais triste e macambúzio, cada vez mais cinzento e desbotado. [QUEM AJUDA DOM CAMALEÃO?]
428. Escrever [Decididamente para o Paulo]
Era uma vez um homem que queria escrever um conto curto sobre um escritor incapaz de ir além do segundo parágrafo de um conto que teimava em escrever. Mas como podia ele escrever um conto curto sobre um escritor que não passava do segundo parágrafo, se ele mesmo nunca passara do primeiro? Mas, tão decidido estava, que puxou do brio, do engenho e toda a sua determinação, e escreveu um enorme romance com mais de quinhentas páginas, mais exactamente quinhentas e cinquenta, e um maravilhoso e único parágrafo. [A moral desta história é esquiva, não se deixa apanhar com facilidade.]
427. Ser e não ser
O que é preciso para se ser pessoa? — perguntou a si mesmo, e esta pergunta tinha em si a resposta, porque sentir é sem dúvida a característica primeira de ser pessoa. E não se pense em nobres qualidades e sentires, como o amor e a coragem, mas também no ódio e no medo, pois sentir é afinal ser pessoa. O contrário seria a indiferença, o embotamento dos sentidos, mas ele não o sabia. E o medo que sentia, a angústia e a abjecção que o esmagavam não o deixavam ver além da pergunta que em erro repetia a si mesmo.
426. O intervalo
Era uma vez um homem que vivia no intervalo de todas as coisas, sempre entre umas e outras, nunca se deixando tocar por qualquer uma delas. Considerava-se o observador por excelência, objectivo, atento, tomando sempre novas posições sobre tudo o que o rodeava. Isto até ao dia em que se questionou a si mesmo, e percebeu que na verdade não havia intervalo possível entre ele e o mundo. [A moral desta história é demasiado óbvia, mas mesmo assim ainda escapa a muitos de nós: Não podes fugir do mundo porque tu próprio és o mundo e o mundo és tu.]