mil e uma pequenas histórias
682
Esforçou-se durante muitos anos para ser quem era, mas a verdade é que só atingiu a verdadeira plenitude quando aceitou ser quem quer que fosse. Garanto-vos que isso não aconteceu de um dia para o outro nem de sua livre e espontânea vontade. [Não somos afinal quem queremos ser, mas apenas quem não podemos deixar de querer ser. E esta é a moral desta história, por mais paradoxal que pareça.]
681
A mulher observou-o rarefeita. “Mas o que é isto que sinto?”, perguntou a si mesma. Sabe a resposta, caro leitor, ou é preciso explicar-lhe desde o princípio?
680
Entre suspiros e risos, foram ao céu... e voltaram. Na verdade, a probabilidade de um não regresso foi por demais elevada. Talvez da próxima, quem sabe...
679
Metro. Hora de ponta. Em pé, os corpos colados, um homem e uma mulher olham-se em silêncio e não dão conta do que quer que seja que os afaste de si mesmos.
677
Estou a atravessar um período muito difícil, disse-lhe ele, e ela olhou-o com ternura. Não sabia ainda que era sempre assim que ele se sentia.
675
Primeiro olhou para ele e viu um príncipe encantador. Não muito mais tarde viu nele um monstro horrível. Na verdade ele não era nem uma coisa nem outra, era apenas ele mesmo e nada mais. Tudo estava no olhar dela. Não que isso tenha feito grande diferença, mas foi assim.
676
Beijou uma princesa e tornou-se um sapo, depois beijou um sapo, e detestou.
674
“Devemos acreditar que a verdade existe, ou será tudo mentira?” Estas foram as últimas palavras de Fernando Imaginário, personagem menor de um extraordinário romance quase desconhecido, proferidas exactamente cinco páginas antes do fim. A verdade é que para ele pouca diferença lhe fazia qualquer que fosse a resposta. E, na verdade, a mim também não.
673 (para um amigo querido)
— Gostas de mim?
— Gosto.
— Gostas muito?
— Gosto!
— Muito?
— Não te chega que goste?
Não, não chegava, de maneira nenhuma, e ambos tinham disso perfeita consciência. Amavam-se já há muito tempo para o poderem afinal ignorar.
672
Um certo homem viveu em silêncio toda a sua vida. Aqueles que explicaram tal facto com a sua mudez, não estiveram nem um pouco mais próximos da verdade do que aqueles que o censuraram por ser anti-social. Falar não é o contrário de estar calado, e se o silêncio fosse de ouro há muito que ele estaria podre de rico.
671
"Quem és tu?", perguntou ele, mas não obteve qualquer resposta.
"Quem és tu?", insistiu, e o rosto fechado crispou-se ainda um pouco mais.
"Quem és tu?", quase gritou. "Quem és tu?", gritou.
Foi nesse exacto momento que o rosto no espelho se abriu num sorriso franco, e ele sorriu também.
670 (literatura sms)
Ele amava-a acima de todas as coisas, mas para ela não era mais do que uma coisa, uma coisa com que ela gostava de brincar às vezes. A perfeição não existe.
669
Ele gritou que a amava, mas ela não o ouviu. Quando fazia amor concentrava-se por completo e nada mais existia para ela a não ser o amor que fazia. Ele de novo afirmou que a amava, agora num sussurro, os corpos saciados estendidos lado a lado, mas ela ignorou-o. Se havia coisa que ela nunca fazia era falar de amor.
668
Sentado no seu quarto, sentia a casa ainda adormecida, o bairro a acordar pouco a pouco e a cidade há muito desperta. Sentado no seu quarto, nada fazendo, ele era afinal tudo o que à sua volta o fazia ser.
666
Ela procurava a verdade em todas as mentiras. Bem sabia que, ao contrário da mentira, a verdade nunca é total e absoluta, mas apenas ela mesma, aqui e agora.
667
Estavam sentados a um canto da esplanada virada ao rio. Ele sorria com toda a sedução das linhas gastas do seu rosto. Ela tinha o nariz grande e estava apaixonada. Foi assim que eu os vi, num relance, e quando olhei de novo já não estavam lá. Mas continuarão aqui.
665 Para o
ElasticidadeUm homem e uma mulher passeavam-se sem rumo num belo jardim em pleno Inverno. Estavam muito apaixonados e, a dada altura, ele tomou-a nos braços e pediu-a em casamento. Ela abriu a boca como se fosse responder-lhe que sim, que aceitava, que era tudo o que queria, mas o que saiu foi bem diferente. Faça-se amor, quase gritou. Então ele abriu com eloquência o enorme guarda-chuva colorido, e nesse exacto momento começou a chover a cântaros. [O amor é uma resposta e não uma pergunta, e esta é a moral que esta pequena história tem para te oferecer, caro leitor.]
664
Há muito, muito tempo, viveu numa pequena aldeia no cruzamento de vários caminhos um homem que tudo via e ouvia e tudo contava. Os que por ali passavam, e muitos iam de propósito, gastavam todo o seu tempo a escutá-lo. E apesar de nunca ter viajado, as suas histórias correram mundo, e muitas vezes a ele voltaram, como filhos pródigos, que ele de novo lançava ao mundo. E nisto consumiu afinal toda a sua vida, quase se esquecendo de viver. Uma moral que daqui se pode retirar é que um homem pode ir longe mas uma história não conhece distâncias.
663 (literatura SMS - 40 palavras, 158 toques)
Gostaria de escolher entre o bom e o mau, mas a verdade é que as suas únicas possibilidades eram o mau e o pior. Foi então que ele disse a si mesmo: "Ainda bem que tenho uma alternativa!" E sorriu.
662
O que vier pode ser e também pode não ser, mas o que foi será sempre tal e qual o que foi, pelo menos enquanto não se começarem a contar histórias sobre isso.
661
Há linhas que nunca se encontram verdadeiramente, por mais perpendiculares que sejam. E pessoas também, por mais vezes se cruzem.
Argumentos
659
1. Todas as palavras são instrumentos. 2. Pá é uma palavra. 3. Logo, pá é um instrumento de ferro ou madeira, largo e achatado, com cabo mais ou menos longo.
660
1. Todas as palavras são ruído. 2. Silêncio é uma palavra. 3. Logo, silêncio é ruído que não se ouve.