mil e uma pequenas histórias
712
Um homem dedicou toda a sua vida ao estudo e à reflexão. Hoje está morto e bem morto, mas os seus pensamentos estão vivos e recomendam-se. Verdade seja dita, já existiam muito antes dele, e continuarão a existir muito depois.
711
Existiu em tempos que já lá vão uma pequena associação de homens e mulheres que gostava de se reunir sempre que possível e discutir durante horas e horas a fio. A única regra a que obedeciam essas reuniões era que nunca em qualquer circunstância se podia decidir coisa alguma. Há muito que tal grupo se finou de vez, e não se conhecem registos da sua actividade, mas a verdade é que ainda hoje a sua prática inspira muito boa gente.
710
Uma certa mulher amou toda a vida um só homem, mas como esse amor foi atribulado, com seus muitos altos e baixos, a verdade é que dormiu com muitos outros e menos, muito menos com ele. Costumava ela dizer que a muitos tinha dado o corpo mas a um só entregara o coração. Confesso que não sei se esta história é triste ou feliz. Talvez seja as duas coisas e uma só. Decida o leitor se quiser e for capaz, que por mim já fiz o que me era dado fazer: contar mais uma pequena história em apenas cem palavras.
709
Era um homem bom e extraordinário, inteligente e sensato, solidário e generoso, persistente e dinâmico, e mais, muito mais, que nele as qualidades vinham sempre aos pares e não terminavam nunca. Pena é que com tantos adjectivos se perdesse o que nele era verdadeiramente substantivo.
Para o Eufigénio
708 Uma piada esquisita
Tu Vian? — perguntou
Mário Henrique com um sorriso.
À Leiria? — replicou
Boris com um piscar de olho.
Para o André Muggiati
707
Pela manhã, esvaziou por completo a sua mente, como nunca tinha antes conseguido, até que nenhuma diferença existiu entre o interior e o exterior, entre ele e tudo o resto. Foi nesse exacto momento que alcançou a certeza que existia, e isso despertou nele uma monumental gargalhada. A sua mulher ouviu-o e riu também, de forma irresistível, assim como o vizinho do quinto esquerdo, e muitos mais, numa onda imensa que parecia não ir parar. A verdade é que o planeta riu durante dias, mas depois tudo voltou ao normal, menos ele, que ainda hoje se sente um pouco aparvalhado.
Para a Maria
706
Ela percorreu muitas vezes o caminho dos sonhos até chegar a ele. Não admira pois que esse amor fosse para ela tão real. E para ele também, que sempre esperava por ela, naquele lugar onde o sonho e a realidade se confundem. Posto em marcha, o amor dificilmente se imobiliza.
705
Um homem tinha tanto medo de morrer que resolveu enganar a morte e viver para sempre. Assim, quando ela chegou para o levar, fingiu que há muito estava morto e enterrado, o que pareceu resultar, pois a morte foi-se embora, coçando pensativa a cabeça. O que ele não ouviu foi o que ela disse a si mesma mal saiu perto dele: “Pobre homem, pensa que tem medo da morte, mas o que ele tem na verdade é medo da vida. Há muito que está morto mas pensa que agora é que a sua vida começou.” E nem pensou em regressar.
704
Depois de muito meditar, decidiu que a única forma de ter o seu coração puro era libertá-lo de tudo que continha, e assim começou a esvaziá-lo. Demorou mais tempo do que pensava, mas um dia o seu coração iluminou-se por fim. O aborrecido era à noite, que a luz não o deixava adormecer, mas com o tempo habituou-se, e a conta da electricidade até baixou, o que dá sempre jeito.
703
Fechou os olhos e logo a viu. Respirou suavemente, e sentiu de imediato o seu cheiro. Humedeceu os lábios e recordou-lhe de pronto o sabor. No silêncio, escutou a sua voz que o chamava insistente. Levantou-se para ir ao seu encontro, mas ela já não existia senão dentro de si.
702 Uma piada demente
Uma mente ia distraída quando esbarrou noutra com violência:
“Como te sentes?”- perguntou ela.
“O que achas?” – disse a outra.
“Dormente?”
“Evidentemente!”
700 e uma
Várias vezes ela colou a sua boca à dele. Várias vezes lhe pressionou o peito com vigor. Várias vezes gritou de desespero. Mas ele morreu. Morreu com um sorriso rasgado de prazer que ninguém soube explicar. Sonhara que estava a fazer amor com uma sereia.
700 pequenas histórias
ufa!
Para a Softy Susana
700
Amor é pouco para descrever o que sinto, disse ela, e calou-se. Mas a verdade é que ele a deixava sem palavras. E isso era o que ela mais gostava nele.
Para o Chalabi Red
699
Versão portuguesa - Malandrice al pomodoro
Primeiro, entalou os tomates. Depois, pelou-os com extremo cuidado. Não havia nada que ele não fizesse por aquela mulher.
Versão brasileira – Ovos malandrinhos
Primeiro, cozeu os ovos. Depois, descascou-os com extremo cuidado. Não havia nada que ele não fizesse por aquela mulher.
Para a Maria Branco
698 Magnífico autor
Ele era magnífico no que fazia. Todos eram unânimes em reconhecê-lo. Pena era que fizesse tão pouco. E nisto também todos estavam de acordo.
Para o Avery Veríssimo
697 Horror. Horror!!
Decapitou a mãe à machadada. Cortou o pai ao meio com uma serra. Sangrou o irmão até à morte. Só ele sobrou. Depois, e até ao fim da sua vida, que foi longa, nunca mais matou ninguém. Ainda hoje, decorridos muitos anos, os investigadores se interrogam se lhe terá faltado a imaginação criminosa ou se lhe acabou apenas a matéria-prima.
Para a blogger do in-quietude
696. O alter-ego
Durante muito tempo procurou o outro eu, aquele que a completaria na perfeição, mas saía-lhe sempre o eu dos outros, todos diferentes e todos iguais, o que ela jurava a pés juntos que não era a mesma coisa, por mais que lhe garantissem que o outro eu nunca podia ser outra coisa senão o eu de um outro qualquer. Finalmente, não aguentou mais e casou-se com o primeiro que lhe apareceu, um eu qualquer que tinha tudo de outro. Mas a verdade é que foram muito felizes os dois, e tiveram um filho a quem deram o nome de Alter-ego.
Para o
Chá de limão
695 Uma história exemplar
Era uma vez um homem para quem o sexo era completamente indiferente. Na verdade, tanto lhe fazia que fosse homem ou mulher, pois, como ele muitas vezes dizia, o importante era que estivesse apaixonado, e nada mais. Não foi feliz para sempre, mas nunca deixou de amar.
694 Uma biografia em cinquenta palavras, ou setenta, caso se conte afinal com este título completamente desnecessário e fora de propósito
Sou um homem e, na minha opinião, isto tudo diz de mim, qualquer que seja o homem que eu for, pois é próprio do homem ser múltiplo e uno, ser a cada momento o que é e o que não é, de acordo com ele mesmo e as suas circunstâncias.
693
Disse “amo-te”, mas há muito não a amava. Disse “vou-me embora”, mas há muito que tinha ido. Disse “estou feito ao bife”, mas há muito que a vida lhe corria bem. Nada de invulgar quando dele se tratava, pois acontecia-lhe muitas vezes os actos adiantarem-se às palavras. Ou seria o contrário? Esta era a sua dúvida. [A moral desta história é tão óbvia que me dispenso de a enunciar. Se o caro leitor não a perceber logo, não desespere, espere um pouco, e verá que vale a pena. Há coisas que levam tempo a compreender, por mais claras que sejam.]
Para a Márcia Maia
692
Chegou finalmente o dia em que o velho escritor perdeu toda a sua ironia, antes certeira e mordaz, e as suas histórias passaram a ser pardas e sem gosto como papas aquecidas vezes de mais. A verdade é que estava há muito tempo farto da vida e só queria morrer. No entanto isso não aconteceria tão cedo, pois a morte, que tantas vezes ridicularizara, não queria o que quer que fosse com ele. E se estar morto em vida já era mau, o pior de tudo é que, por mais que se esforçasse, não conseguia fazer disso uma boa história.
691
Havia um homem, todos o recordam, que nunca se enganava e raramente tinha dúvidas. E também outro, menos conhecido mas igualmente determinado, que tinha a certeza de tudo quando todos os outros estavam apenas convencidos disso. Os dois nunca se encontraram, mas podia apostar, sem qualquer possibilidade de perder, que um e outro nunca seriam capazes de trabalhar em equipa.
690 A lebre e o automóvel(resposta a Italo Svevo)
Uma lebre esperta viu passar um automóvel. "Oh, exclamou. Os homens já não precisam correr."
689
Um certo homem dizia a tudo que sim e que não, dependendo se estava ou não de acordo com o que ele próprio pensava e desejava. No entanto, a verdade é que morreu cedo e miserável, apesar de querer viver feliz para sempre. Pode-se iludir a vida, mas não se pode enganar a morte. Por mais que se queira, a morte tem sempre razão. Pelo menos por enquanto. Até ver!
688
Faleceu no exacto dia da sua morte e ninguém ficou admirado. Há muito que ele vivia numa morte aparente e estavam todos à espera que caísse na realidade. Foi o que aconteceu afinal, porque ele nada mais era do que um esboço à espera de acabamento. E no funeral todos sorriram de alívio, menos ele, que se riu à gargalhada. É que a vida é curta e a morte eterna.
684
Passou a agir sem pensar e a sua vida mudou completamente. Esqueceu-se afinal de si próprio e foi enfim feliz.
685
Pensar duas vezes é o pior que podemos fazer, pois o problema na vida de todos os dias nunca está em se pensar de menos mas em pensar-se de mais. Não pense nesta verdade mas também não se esqueça dela, e verá que a vida lhe correrá muito, muito melhor.
686
As palavras podem vir antes dos actos ou depois deles, mas não devem nunca substituí-los. Triste é a vida daqueles que se escondem atrás das palavras que dizem. Triste é a vida feita de palavras.
687
Cada pequena história encerra um segredo que não se contém nas palavras que a formam. Se o quiser desvendar, tem o leitor de procurar em si mesmo a resposta. E esse é afinal o segredo de todas as pequenas histórias.