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mil e uma pequenas histórias
19.11.02
 
92.

Escreveu sem parar durante quatro meses. Claro que comeu e dormiu, um pouco de cada, muito pouco, mas o resto do tempo escreveu, escreveu e escreveu. Mas um dia terminou. Duas ou três horas foram mais que suficientes para ler o produto do seu árduo esforço. Correcção após correcção foi tentando melhorar o texto mas cada vez o detestava mais. Rasgou folha a folha e deitou tudo no lixo. Recomeçou de novo, uma e outra vez, e sempre com o mesmo resultado. À quinta ou sexta vez deixou de se preocupar: independentemente do resultado agradava-lhe cada vez mais o processo.

91.

Abriu o livro mas, apesar de olhar com insistência as letras espalhadas pelo branco da folha, não conseguia ler. Abriu e fechou os olhos mas nada aconteceu: as palavras formavam frases que não conseguia compreender. Não tinha a ver com a língua, não tinha a ver com a sua visão, não tinha a ver com a inteligibilidade do texto; era como se um vidro fosco se tivesse erguido entre ele, leitor, e a própria leitura. Fechou e voltou a abrir o livro, mas nada aconteceu. Escolheu um clássico e leu-o com redobrado prazer. “Já não se escreve assim!”, declarou peremptório.

90.

Abriu o livro ao acaso e leu uma linha, mais precisamente a quinta linha da página 145. Ficou muito perturbado, o rosto lívido e a voz embargada, parecia que ia começar a chorar mas conteve-se com esforço. Leu mais uma linha, desta vez a décima da página 31, e riu com gosto durante muito tempo. Depois foi a vez da linha trigésima da página 222: um autêntico convite à reflexão que lhe foi impossível declinar. Devolveu o livro ao seu lugar na estante e pensou emocionado, entre o choro e o riso, que só a literatura dá sentido à vida.

89.

Uma matilha de quinhentos cães matou noventa e três ovelhas. Os cães pertenciam a cem caçadores, as ovelhas a um casal de velhos. Os caçadores, os cães, o casal, todos tinham nomes; quanto às ovelhas não sei, mas presumo que sim. Seiscentos e noventa e cinco nomes que gostaria de enumerar; associando a cada um deles um facto e uma qualidade para que tudo ficasse mais claro, mais vivo, como naquelas estampas de caçadas onde ressalta o vermelho das jaquetas e o castanho dourado do dorso dos cães. Também morreu um veado, era gentil e gostava de comer flores tenras.
 



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Luís Ene

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