75.
Enrolou-se na enorme bandeira vermelha de todas as manifestações e deitou-se no caixão, austero, à espera da morte. A morte chegou, algum tempo depois, abeirou-se do esquife, intrigada, e riu uma gargalhada prolongada. “Tens a certeza que chegou a tua hora?”, perguntou, meio engasgada, de lágrimas nos olhos. O velho comunista, rígido, crispado, gritou a sua palavra de ordem: “Morte camarada, a minha vida já não vale nada”. “Olhe que não, olhe que não!”, respondeu-lhe a morte, o riso contido a custo, virando-lhe as costas e desaparecendo sem mais. Digam o que disserem, a verdade é que a morte é misericordiosa e pouco dada a crueldades: voltou mais tarde, tão séria quanto a ocasião e a sua ética exigiam, e levou-o então consigo.
74.
Agarrou no martelo e quebrou mais alguns dogmas, as pancadas potentes e certeiras desferidas com a mesma força e determinação com que abrira as primeiras brechas no muro atrás do qual se escondera durante tantos anos. Empunhou a foice com energia redobrada e cortou cerce as últimas resistências, daninhas, indesejáveis, material dialéctico desajustado e sem préstimo. Com a bandeira, vermelha, nua dos seus símbolos, forrou um sofá velho, manchado, onde se sentou a descansar, acabando por adormecer. Quando acordou, a morte olhava-o fixamente, o sobrolho franzido de interrogação. Apressou-se a esclarecer que era comunista, comunista convicto, sim, mas também um comunista novo, renovado, a notícia da sua morte, afirmou peremptório, era de todo exagerada.