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mil e uma pequenas histórias
19.9.02
 
31.

Não queria morrer sem deixar rasto, ignorado, incompreendido, apenas mais uma breve notícia numa página interior de um jornal local. Não só o seu suicídio deveria estar carregado de um claro e grandioso simbolismo trágico, mas também o bilhete de despedida, inevitável, teria de ser brilhante, conciso e comovente. Começou pela tarefa que lhe pareceu mais fácil; terminou duzentos e cinquenta e sete bilhetes de despedida, que lhe consumiram seis meses de intensa actividade, mas, apesar da elevada qualidade de todos, nenhum lhe pareceu verdadeiramente ajustado ao seu sentir. Uma grande editora interessou-se pelo seu trabalho e publicou-o sem demoras, tendo atingido, em seis meses, seis edições e cem mil exemplares. Aceitou o sucesso com indiferença, um ano depois morreu, famoso, sem deixar qualquer bilhete de despedida; o seu suicídio continua por explicar.

30.

Adormeceu a pensar nela e acordou a pensar nela. Vários dias depois continuava a pensar nela. Este sentimento era-lhe tão agradável que decidiu preservá-lo. Desapareceu sem deixar rasto e nunca mais a procurou. Foi bem sucedido. Ainda hoje, decorridos mais de vinte anos, continua loucamente apaixonado por ela.

29.

Ia a entrar no carro quando a idiota sorriu e ofereceu-lhe um beijo. Ele ficou embaraçado e corou de vergonha. Quando ligou o motor olhou pelo espelho e foi atingido por um beijo. Arrancou a tempo de deixar outro beijo para trás. Sentiu-se bem, detestava repetições.

28.
Ela tocou-lhe a mão sobre a mesa com as pontas dos dedos. Ele estremeceu interiormente. Não tinha sentido a suavidade de uma carícia ou a displicência de um choque ocasional; fora um toque intenso, profundo, interrogativo, a pôr em causa a sua própria existência — a mais extraordinária experiência metafísica que alguma vez tivera.

27.

O dia mal começara. Ele olhou a mulher que bebia café, a chávena erguida com leveza. Ela olhou o homem que lia o jornal passando as folhas com determinação. E o dia prosseguiu com leveza e determinação.

26.

Quando o seu salário se encolheu, mais uma vez, ao novo aumento generalizado do custo de vida, pensou que era altura de fazer alguma coisa. Sentou-se no sofá vermelho, as pernas cruzadas, o olhar fixo no tecto, a concentração em pessoa, e adormeceu imediatamente. Ao abrir os olhos, estremunhado, estava decidido: ia entrar em greve, em greve total. Saiu de casa, apressado, e foi postar-se ao lado do poeta de pedra, que protestou, sem se mover, incomodado com aquela proximidade não desejada. Dias depois, não aguentou mais e foi-se embora, em silêncio, arrastando os pés. Ocupou-lhe de imediato o lugar; tinha-se habituado rapidamente ao seu novo estatuto. Ninguém notou a diferença, nem mesmo os pombos.

25.

Um belo dia, decidiu escrever a história da sua vida. Sentou-se em frente ao monitor, olhou por um momento o dia lá fora, e começou a escrever tudo o que recordava, por ordem cronológica, desde o nascimento, primeiro acontecimento inscrito no rol, sem prejuízo de um breve mas necessário recuo genealógico. Nos cinco anos seguintes, reconstituiu exaustiva e minuciosamente a sua existência até ao dia em que começara a descrevê-la. Quando terminou, leu, duas vezes, as seiscentas e trinta e quatro páginas impressas a dois espaços, e achou o texto incompleto, os cinco anos que levara a escrevê-lo não estavam lá e, o que era pior, não terminava verdadeiramente, não tinha fim. Saiu de casa e deu um longo passeio pensativo ao longo da via rápida, até que foi assaltado pela ideia de que os últimos cinco anos eram o próprio livro, o livro incluía esse tempo de escrita em si mesmo, a descrição da sua vida estava completa, até aquele momento. Sorriu e precipitou-se para o fim, servido ali mesmo na faixa de rodagem por um veículo longo como a morte.

24.

Entrei no café da esquina e dei de caras com a morte, uma mulher morena, roliça, vestida de vermelho, como na canção, como num filme. Olhou-me nos olhos e sorriu, convidativa, chamando-me para a sua mesa. Sentei-me à sua frente, de costas para a entrada, e sorri-lhe de volta, observando-a com atenção. Os olhos eram baços, velados, cheios de promessas; os cabelos, castanhos, caiam em vagas suaves, ondulados. De repente, toda ela pareceu vibrar, como um reflexo num lago agitado pelo vento. Esfreguei os olhos e, à minha frente, estava um homem moreno, magro, vestido de cinzento amarrotado, que me olhava espantado. Reconheci-me de imediato, ergui-me e saí, sem olhar para trás. Não tenho nada contra a morte, irei com ela quando a hora chegar, mas uma coisa é certa, detesto brincadeiras de mau gosto, é mais forte do que eu.
 



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Luís Ene

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