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mil e uma pequenas histórias
8.9.02
 
19.

Pediu um café, simples, sem adjectivações, nem curto nem cheio, nem pingado nem escaldado, nem outra coisa qualquer, apenas um café, um café para ajudar a ganhar coragem, para mais um dia, para um dia mais. O empregado trouxe-lhe o café, quente, a escaldar, meio-cheio e fumegante. Deixou passar alguns minutos, não mais de cinco, e bebeu-o num gole, sem açúcar ou adoçante. Olhou a chávena e estava meio cheia de novo, quente a escaldar, fumegante. Esperou e bebeu o café outra vez. Pousou a chávena no pires, com atenção, cuidadosamente, estava de novo meio-cheia; guardou-as no bolso direito do casaco, tentando não entornar, e saiu sem pagar. Abriu uma cafetaria num centro comercial e serviu milhares e milhares de cafés, até ao dia em que, misteriosamente e sem qualquer explicação, a chávena, a mesma tantas vezes usada, ficou vazia, definitivamente. Trespassou a cafetaria com o recheio, a chávena e o pires incluídos, e deixou de trabalhar. Viveu ainda muitos anos mas nunca mais bebeu café, por razões sentimentais.

18.

O médico deu-lhe a má notícia sem mais nem menos, a seco, a voz monocórdica, o olhar fixo para além dele, a sentença ditada sem qualquer emoção. Tinha um mês de vida, não mais de um mês de vida, repetiu uma vez quando ele disse que não acreditava, e repetiu de novo quando ele gritou que dos dois não seria o primeiro a morrer. Acertou, em cheio, o médico estava redondamente enganado, o homem morreu três anos mais tarde, num acidente rodoviário, apenas um mês depois de ter saído em liberdade condicional, a meio da pena de prisão a que foi condenado, pelo crime de homicídio, privilegiado, é claro.

17.

Era um homem forte e determinado, tão forte e determinado que disse não à morte, quando ela chegou, a seu tempo, exigindo que a seguisse. Discutiram durante muito tempo, ela paciente mas imperativa, ele argumentativo mas irredutível, sem quaisquer cedências de parte a parte. A discussão, como se disse já, durou muito tempo, mais exactamente seis dias, dez horas e alguns minutos, poucos. Nenhum deles mudou de opinião, a morte era a morte, que havia de fazer, era a sua natureza, o homem, esse, era um homem, ainda que forte e determinado, e chegou uma altura em que não conseguiu falar mais. A morte perguntou então se podiam ir, já era tarde, e perante o seu silêncio, quem cala consente, conduziu-o à sua morada, afinal.
 



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Luís Ene

©2002/5

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