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mil e uma pequenas histórias
30.6.03
 
HOMEOPÁTICAS

281. (À Deméter)

Um homem perguntou certo dia a si mesmo se era possível procurar a felicidade. E durante muito tempo só pensou em responder a essa inquietação. Pode-se procurar a felicidade, mas na verdade só ela nos pode encontrar, foi esta a conclusão a que chegou afinal. E nesse momento sentiu-se feliz.

282. (À Inês)

Começou dirigindo-se com ênfase à assistência: Quem sou e o que faço aqui? Fez uma pequena pausa dramática antes de recomeçar, mas nesse entretanto todos se apressaram a sair rapidamente da sala em sinal de protesto. Onde já se vira tamanha desfaçatez! O conferencista não se importou, e deixou-se ficar sozinho na sala a tentar responder às suas próprias perguntas.
 
27.6.03
 
OBVIAMENTE…

277.

Era uma vez um homem que ia a ler e a andar, não viu o degrau, estatelou-se ao comprido no chão. Nada o faria prever, mas o certo é que bateu com a cabeça num paralelepípedo saliente e morreu sem mais. [A moral desta história é óbvia: há leituras perigosas.]

278.

Era um indivíduo tão marginal que não se integrava em grupo algum, por mais à margem estivesse. Levava uma vida solitária e muito aborrecida, mas era a vida dele; era isto que ele dizia a si mesmo, pois não tinha mais a quem o dizer. [A moral desta história é óbvia: se nos afastarmos dos outros acabamos a falar sozinhos.]

279.

O homem tentou ler o livro que trouxera consigo. Depois esforçou-se por ouvir a música. Mas não conseguia sair de si e ser outra coisa se não ele mesmo. Como posso ser sempre tão insuportavelmente eu? — perguntou a si mesmo. Cada um é como é! — respondeu rápido, e riu pela primeira naquele dia, esquecido por momentos de si. [A moral desta história é óbvia: Rir é descansar de nós mesmos.]

280.

O homem já não compreendia de todo o seu país. O número de presos continuava a aumentar enquanto a taxa de criminalidade se mantinha baixa! Pagava cada vez mais impostos e recebia os mesmos serviços de má qualidade de sempre! E nada, mas mesmo nada parecia fazer sentido, pois todos tinham razão mesmo quando estavam em total desacordo! Isto trazia-o muito aperreado, mas um dia percebeu afinal: o país estava pedrado. Ficou muito aliviado, chegara a pensar que enlouquecera. [A moral desta história é óbvia: se não percebes o mundo, não te atormentes, provavelmente o problema não está em ti.]

 
26.6.03
 
276.

Cada livro tem os seus leitores. Uns mais, outros menos. Mas alguns livros têm leitores fiéis que nunca os deixam de ler. Foi o que aconteceu entre um livro e um leitor meu amigo. Conheceram-se e nunca mais se separaram. Um fenómeno que nem é muito invulgar, basta que se encontre o livro certo, aquele que desperte em nós o amor incondicional pela leitura. E foram muito felizes: o seu amor nunca teve fim pois renovava-se a cada nova leitura, afinal. [Esta é uma história fraca com uma moral forte: mais que um amigo, um livro pode ser um amante.]
 
23.6.03
 
275. Solilóquio

É talvez porque esperamos dos outros o que eles não nos podem dar que nos sentimos tão sós. E afirmar que não estamos sós ou que estamos sempre sós não é afinal a mesma coisa? Pelo menos ambas as afirmações assentam na crença que existe um Eu. Mas se o Eu verdadeiramente existe, só podemos então estar sós, porque os outros existem fora de nós. E se o Eu não existir, todos seremos afinal um só, em completa solidão. E depois? Desde quando estar cheio de si é um problema? [Disse isto e calou-se: ninguém estava ali para o ouvir!]
 
22.6.03
 
CRÍPTICAS

273.

Há pessoas que não são pessoas. E há outras que só lhes falta um pequeno nada para o serem, um gesto, uma hesitação, um sobressalto, tudo pode precipitar o momento. Mas é preciso entrar no jogo, esquecer as regras e aceitar o movimento que as conduzirá finalmente a si mesmas. Foi exactamente assim que ele o fez, e só o conseguiu porque aceitou a possibilidade tal como ela lhe apareceu.

274.

Era uma vez um homem que permaneceu quieto no seu quarto até não se distinguir dos livros que o atravancavam. Também eles estavam fechados sobre si mesmos, esquecidos de ser. Agarrou então um livro ao acaso e levou-o consigo para fora. Sentou-se mais tarde num banco de jardim e leu como se fosse a primeira vez. Nunca mais regressou ao quarto e jamais abandonou o livro. [Foram felizes para sempre, é o que me apetecia dizer a terminar! E vocês?]
 
18.6.03
 
272.

Era uma vez um homem que durante toda a sua vida procurou saber quem era, e tudo o que pensou, disse, fez e possuiu, não foi mais do que a expressão dessa busca. Mas um certo dia, não muito longe do dia da sua morte, disse pela primeira vez a si mesmo que talvez ele fosse apenas um pequeno sopro de consciência, de curiosidade, que o tinha levado de umas coisas às outras daquilo que até então julgara ser. E isso foi apenas o princípio.
 
17.6.03
 
271. Dito e feito

Era uma vez um homem que dizia apenas o que tinha de ser dito, e fazia tão só o que tinha de ser feito. Viveu sempre assim, firme nas suas convicções, até morrer, sem no entanto atrair sobre si a atenção dos outros, e dizem até que foi muito feliz. O mesmo se passou com esta pequena história que, tal como o homem, também não teve escolha e se limitou a ser o que teve de ser até ao fim.
 
 
270. Porca de vida!

Agir pode ser tão inevitável como não agir, mas não agir dá muito menos nas vistas. Foi mais ou menos isto que ele pensou, amaldiçoando-se mais uma vez nem sabia bem porquê, se por não ter conseguido deixar de agir ou apenas por ter agido.
Não lamentava ter agido, mas podia não o ter feito, e se o não tivesse feito só a ele diria respeito e a mais ninguém, o que não era o caso. Fosse como fosse, uma coisa é mais que certa, era um homem muito complicado, mas o livre arbítrio também não lhe dava folgas, essa é que é a verdade.
 
15.6.03
 
269. Uma receita

Partiu seis ou sete ovos e deitou-os (sem a casca!) numa tigela, acrescentou oito ou nove colheres de sopa cheias de farinha, um copo e meio de leite (1/4 de litro era o que dizia a receita!), sal e pimenta, mais o que tinha à mão (queijo aos cubos, uma chávena de vegetais cozidos, azeitonas pretas, um pouco de fiambre!) e ainda salsa. Mexeu tudo muito bem e levou depois a lume brando numa frigideira antiaderente até cozinhar (rijinha mas sem estar queimada!). Finalmente, cortou a tortilha em pedaços e comeu-a sozinho, acompanhado de um vinho tinto de aroma subtil. Ela tinha-o ensinado bem! [A culinária tem a sua arte mas também as suas histórias.]
 
14.6.03
 
268. Existirá morte depois da vida?

Era uma vez uma vez um homem que conseguia sempre, independentemente das circunstâncias, retirar da vida um prazer deveras extraordinário. Não admira assim que, mesmo depois de morto, se tenha ainda mantido vivo no seu interior durante bastante tempo, o tempo suficiente para começar a acreditar na imortalidade da alma. [A moral desta história é apenas uma: algumas coisas só acabam muito depois do fim.]
 
13.6.03
 
267. O coração da literatura

O coração dos homens é um livro onde se podem ler e escrever todas as histórias. E todos os outros livros só existem por referência a esse livro primeiro, e sem ele nada seriam. Sabem-no os leitores que nunca leram um livro, sabem-no os escritores que destruíram toda a sua obra, sabemo-lo afinal todos um pouco. A verdadeira literatura só existe no coração dos homens. E se alvitrarem que o coração é apenas um órgão muscular, o agente principal da circulação do sangue, saibam que estão no bom caminho. Continuem a ler e a escrever, mas façam-no com o coração.
 
10.6.03
 
MILAGRES E HOMENS SANTOS

262.

Os discípulos de Bagham Varareschi juraram ter visto, no exacto momento em que ele morreu, uma bola de fogo sair da sua boca e subir direito ao céu. O célebre médico e investigador inglês, Lord Whodonit, observou o cadáver e atribuiu a morte a uma formidável crise gástrica, causada por uma refeição excessivamente condimentada. Seja como for, o médico veio a morrer nessa mesma noite, vítima de um incêndio que deflagrou no seu quarto. Os amigos do médico recordaram com tristeza o seu hábito de fumar e beber na cama, mas os discípulos do mestre Bagham riram dias a fio.

263.

Simeão, o Estilista, viveu cerca de cinquenta anos no topo de uma coluna esperando um sinal. Cora, a Modelo, esperou pacientemente na base da coluna que ele descesse. Foi em vão, um dia Simeão ascendeu ao céu e deixou-a ali, sem mais nada para fazer se não ir-se embora também.

264.

Diz-se que Shankharacharya, um homem santo, era capaz de rachar uma montanha com um único olhar, bastando para o efeito chamarem-no pelo nome e pedirem-lhe com respeito que o fizesse. Mas a verdade é que não há memória de alguém ter conseguido pronunciar o seu nome sem desatar a rir às gargalhadas. Felizmente para eles, eram pessoas e não montanhas.

265.

Um eremita sentou-se um dia numa pedra que se erguia solitária e esperou, esperou, e esperou, até que ambos se confundiram. Muitos anos passaram e do antigo eremita nada ficou, mas a pedra ainda o guarda no coração, e muitos dizem até, que de mil em mil anos é possível ouvi-la gritar o seu nome.

266.

Um certo eremita abandonou um dia o mundo e isolou-se no coração da floresta. Aí permaneceu, de tal forma imóvel e por tanto tempo, que seria impossível distingui-lo das outras árvores, não fosse o facto inexplicável de, no raio de vários quilómetros, todas elas lhe terem voltado ostensivamente as costas.
 
 
261. A morte do velho blogueiro

Quando o velho blogueiro resolveu fechar o seu blogue, não imaginou nem por um instante o que ia acontecer, no entanto, visto à distância, é perfeitamente compreensível que assim tenha sucedido. A verdade é que o blogueiro não se limitou a deixar de editar o blogue, solução mais que razoável, mas resolveu apagá-lo, fazê-lo desaparecer por completo da blogosfera. Foi um clique que lhe deu. Deixou de existir ao mesmo tempo que o seu blogue. [A moral desta história não engana: Há obras que não sobrevivem à morte do autor, e há autores que não sobrevivem à morte da obra.]
 
 
260. Um homem e as suas calças

Certo dia um homem começou a vestir as suas calças preferidas, mas sentindo-as muito apertadas perguntou-lhes: Vocês encolheram? Ao que as calças responderam com rispidez: Engordaste de novo, essa é que é a verdade, melhor do que ninguém nós sabemos que assim é, sentimo-lo na ganga; tens de perder peso rapidamente. O homem olhou-se ao espelho e percebeu que as calças tinham razão, era inútil pretender que ainda lhe serviam. Decidiu então que a partir daí passaria a vestir calças um número acima. [A moral desta história é muito antiga: um homem de verdade não dá ouvidos às suas calças.]
 
7.6.03
 
Pequenas histórias para telemóvel
Nm d – Nm d + (texto+nome=160 caracteres)]

256.

[Um certo dia um homem deu por si outro, obliterado de quem tinha sido, e sentiu-se imensamente feliz, pois todo o futuro podia agora finalmente ser seu. Luís N.]

257.

[Era uma vez uma mulher que amou, amou, perdidamente, mas nunca percebeu que o seu amor era um caminho que a poderia levar a si mesma, + cedo ou + tarde. Luís N.]

258.

[Era uma vez uma mulher que perdia todos os seus homens com a mesma facilidade com que os encontrava. Foi assim que se manteve sempre jovem e apaixonada. Luís N.]

259.

[Um certo dia 1 homem decidiu mudar tudo na sua vida, e ainda bem que o fez, pois foi dessa maneira que conseguiu afinal manter-se sempre = a si mesmo. Luís N.]
 
5.6.03
 
255. O Emir dos Crentes

Certo dia o sultão Harum Al Raschid, Emir dos Crentes, ordenou que trouxessem à sua presença dois homens em tudo comuns, e a cada um deles ordenou: Escolhe entre matar alguém ou ser morto! Um deles escolheu matar e o outro ser morto, mas a ambos o Emir dos Crentes mandou degolar sem demoras. Ao velho sábio que ousou perguntar, esclareceu que ambos lhe tinham dado uma resposta, quando na verdade só a ele cabia escolher. [A moral desta história quase se dispensava de tão evidente: Somos sempre livres de escolher, mas a decisão final não nos pertence de um todo.]
 
 
254. Mudar (à Laura)

Era uma vez um gigante que vivia no meio da gente pequena, mas era muito desajeitado e a convivência tornou-se cada vez mais difícil. Todos fugiam à sua frente e gritavam sem cessar que se fosse embora, insultando-o de tudo, mas ele insistia em ficar e fazia de conta que não era nada com ele. Um dia em que se sentia muito mais triste do que o habitual decidiu finalmente mudar. Concentrou toda a atenção em si mesmo e convocou a mudança desejada até que ela finalmente aconteceu: tinha agora o tamanho dos homens. Mal a população se deu conta da transformação, logo o expulsou da aldeia e ordenou-lhe que nunca mais voltasse. Ele foi-se embora sem protestar, os braços caídos ao longo do corpo, a sua vontade tinha diminuído tanto quanto o seu tamanho. [Moral da história: Nunca inicies uma mudança que te afastará para sempre de ti mesmo.]
 
4.6.03
 
EVIDÊNCIAS (ao Zé)

252. Existir

Era uma vez um homem vulgar que, depois de muito pensar sobre o sentido da vida, concluiu que existia. Afinal era apenas isso, existia, e nada mais, mas era uma sensação maravilhosa, e só desde então sentiu que existia verdadeiramente.

253. Literatura

Toda a gente sabe muito bem que a literatura só pode acontecer quando se escreve, e se o que um escritor faz é escrever, então não admira que às vezes lhe aconteça literatura, mesmo quando só queria contar uma história.
 
2.6.03
 
251. Livros e homens

Um homem encontrou um livro estendido num banco de jardim e perguntou-lhe: Quem te perdeu? Ao que o livro respondeu: Ninguém me perdeu, na verdade fui aqui deixado para que alguém me encontrasse e me levasse consigo. Mas ainda o livro mal acabara de falar e já o homem abalava sozinho sem dizer sequer uma palavra. [A moral desta história é dupla: há livros que não falam ao coração dos homens; há homens que são surdos à voz dos livros]
 



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... a ficção no seu mínimo...

Luís Ene

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