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mil e uma pequenas histórias
30.12.02
 
121.

Acendeu um cigarro com uma chama que tremia. Aspirou o fumo e tossiu, amaldiçoando o vício. Faltava um dia para o fim do ano. Ainda podia cumprir a sua promessa. Durante vinte e quatro horas não fumou. Sentiu-se péssimo, doía-lhe a cabeça e nunca se tinha sentido tão ansioso. À meia-noite não formulou qualquer desejo, limitou-se a acender um cigarro e fumá-lo com paixão. Era um homem de palavra, tinha deixado de fumar em 2002, mas que lhe tinha custado bastante, tinha! Os vícios são os nossos melhores amigos, gritou sufocado por um ataque de tosse eminente. Cof, cof, cof.
 
19.12.02
 
120.

Depois de uma hora e meia à espera, informaram-no que o seu assunto tinha de ser resolvido noutro serviço. O homem não esperou nem um momento para começar a destruir tudo à sua volta. As funcionárias refugiaram-se na sala da chefe e chamaram a polícia. Mal o polícia chegou, o homem atirou-lhe um extintor à cabeça que não lhe acertou por milímetros. Quando o polícia o desafiou para lutar como um homem, acalmou imediatamente e avançou para ele num passo de dança, os punhos bem erguidos. Foi KO ao primeiro round, como nos seus tempos de glória. Ai dos vencidos!
 
18.12.02
 
119.

Um homem matou outro sem qualquer motivo. Tinha uma arma. A arma estava carregada. A vítima estava parada do outro lado da rua. Era um bom alvo. Disparou. Matou-o. A ocasião faz o ladrão, o assassino e o escritor. Os resultados, claro está, nem sempre são bons. Dito e escrito.
 
 
118.

O que é o EU não é uma pergunta fácil de responder como sabem aqueles que o tentam a sério. É uma perda de tempo procurar o EU nos gestos ou nas palavras, assim como é difícil separá-lo dos OUTROS. Tentar definir o EU por oposição aos OUTROS é ingénuo, pois os outros também são eus, mas tentar apresentar o EU sem os OUTROS é estupidez, pois o EU não existe sem os OUTROS que, como já disse, são OUTROS EU. EU comecei por dizer que não era fácil responder, o que me incluía a mim e aos OUTROS EU.
 
 
117.

No Outono da sua vida, o homem deixou tudo e foi pelo mundo fora, à procura de uma sombra que o fascinara na sua juventude e que perdera. Começou pela Grécia e a Índia foi uma das suas escalas seguintes. No Inverno da sua vida, o homem abandonou a sua busca e regressou a casa e a si mesmo, sentindo-se em paz. A partir de então, sentou-se no alpendre todo o dia — espantava-se com as árvores e sentia uma grande ternura pelas pedras. Estava a caminho da desmaterialização, em breve seria apenas mais uma sombra furtiva no jardim do tempo.
 
16.12.02
 
116.

A meu lado, um homem de boné azul, a face esquerda encoberta pela mão, também esquerda, estava sentado como se estivesse num comboio, não sei bem porquê, ou talvez saiba, mas foi isso que senti, o seu desejo era partir, talvez apenas ir embora dali ou talvez regressar a um lugar de onde há muito tempo partira também. De repente, sem qualquer aviso, o homem começou a cortar as unhas da mão direita, placidamente, e estragou-me a fotografia que eu ainda não revelara por completo no banho da minha imaginação. Não me admira mesmo nada que esta história termine assim.
 
 
115.

Casaco de cabedal preto, cabelo branco, o casaco muito preto, o cabelo muito branco. Fiquei a pensar se seria um homem de contrastes, estilo ou preto ou branco, mas entrevi-lhe o lenço vermelho e os sapatos castanhos. O que significava tudo aquilo? O que se pode retirar da observação que a imaginação não supere? O relógio tinha uma pulseira azul, e de uma minúscula caixa de estanho retirou um comprimido que engoliu com uma golada do galão claro. O telemóvel em cima da mesa era azul. Fiquei a pensar com os meus botões qual seria a cor da sua alma.
 
 
114.

Na mesa do café à minha frente estava sentado um casal de meia-idade, um homem barbado e uma mulher de cabelo encaracolado, e as suas vozes chegavam até mim envoltas no bruaá geral: silvos de vapor, o abanar de um pacote de açúcar, o choro de um bebé, o tilintar de copos e talheres, o trrim de um telefone, o arrastar de cadeiras, o ronco da máquina de moer café, o voltar de páginas, o tlim tlim da máquina registadora e... no meio de tudo isto... não consegui ouvir o que diziam. Depois foram-se embora, e não pensei mais nisso.
 
13.12.02
 
113.

Partiu um espelho, abriu o guarda-chuva dentro de casa, saiu e passou por baixo de uma escada, ao mesmo tempo que um gato preto atravessava o passeio à sua frente. Nada lhe aconteceu, e quando regressou sobre os seus passos, vinha resmungando em voz baixa: superstição, superstição, superstição. Entrou em casa, pendurou o guarda- chuva no bengaleiro, e foi apanhar os estilhaços de vidro pelo chão. Foi então que se cortou na mão direita, e deixou-se ficar aparvalhado, o sangue a escorrer abundantemente para o chão. Foi o suficiente para conduzir à loucura o seu crocodilo de estimação, que estava muito sossegado a apanhar sol debaixo da janela. Engoliu-o de uma vez só. Teve azar, ainda nem tinha começado a digestão, e já estavam a abrir-lhe a barriga para retirar o dono. Nunca mais comeu ninguém numa sexta-feira treze. Há lições que os homens e os bichos não esquecem facilmente.
 
12.12.02
 
112.

Um homem matou a namorada e comeu-a. Não se sabe como a cozinhou, nem durante quanto tempo pensava consumi-la. Também não se sabe porque adoptou tão invulgar dieta. Não se sabe muita coisa. Namoravam há dois anos e falavam em casar. Aqueles que os conheciam disseram que se davam muito bem e nunca os tinham visto discutir. Eram ambos vegetarianos e membros activos de diversas organizações de defesa dos direitos dos animais. O homem declarou-se culpado, mas com circunstâncias atenuantes. Afirmou que ela lhe tinha implorado que a comesse, e só por isso o fizera; não conseguia negar-lhe um pedido.
 
 
111.

Uma criança de seis anos passou a acreditar no Pai Natal no exacto momento em que o viu assaltar uma estação de gasolina. Riu-se muito quando o Pai Natal disparou para o ar e não se assustou nem um bocadinho quando ele a tomou como refém. Mais tarde apareceu em todos os noticiários televisivos, muito sorridente e compenetrada, a explicar tudo o que tinha passado. Recebeu muitos presentes e muitas mensagens de apoio e simpatia. Foi ainda contratada para fazer anúncios comerciais e participar numa série televisiva. Tornou-se famosa e os pais enriqueceram rapidamente. Vão acreditar sempre no Pai Natal.
 
 
110.

Uma mulher de meia-idade comeu inadvertidamente uma página de um livro de culinária numa livraria da baixa. Inquirida pelo proprietário do estabelecimento, respondeu que estava em dieta rigorosa e não conseguira resistir ao divino aspecto daquele inofensivo bolo de chocolate. O verdadeiro problema foi quando a mulher só quis pagar a página que comera, e o dono da livraria insistia que ela pagasse todo o livro. Chamada a autoridade policial, o homem foi levado para a esquadra por ter agredido com violência um polícia que afirmou que a cliente só era obrigada a pagar aquilo que comera e nada mais.
 
10.12.02
 
109.

Uma mulher matou o marido com o machado de cortar lenha, desferiu-lhe três machadadas frontais e na última a lâmina penetrou tão fundo no crânio que não o conseguiu retirar. O homem mostrou-se estupefacto, não estava mesmo nada à espera, e por mais que meditasse não encontrava explicação; acabou por ficar com uma tremenda dor de cabeça, e nunca mais pensou no assunto. A mulher, por seu lado, também não perdeu muito do seu tempo a reflectir sobre o que fez. Gostava de ter recuperado o machado, mas o homem habitou-se a ele e não mais o tirou da cabeça.
 
5.12.02
 
108.

Estava deitada na cama, serena, morta. Ataque cardíaco, disseram, não havia qualquer necessidade de a sujeitar a uma autópsia. Todos concordaram, mas um amigo muito querido afirmou solenemente estar convencido que ela tinha morrido de tristeza. Não estava a sugerir suicídio, esclareceu, mas apenas a dizer que ela simplesmente tinha saído da vida, lentamente, sem que ninguém tivesse dado por isso, e morrera. Às vezes acontece e não tão raramente como se possa pensar. Aconteceu a um primo meu a quem a mulher abandonou para ir viver com outra. O coitado não aguentou nem uma semana, morreu afogado de tristeza.
 
 
107.

O homem queria ser, desesperada e teimosamente, mas todos os átomos do seu corpo e do seu espírito se afastavam uns dos outros, a uma velocidade estonteante, em direcção ao nada universal. Não conseguia travar a expansão e sentia que o seu ser, agora estendido até ao máximo, não tardaria a perder a unidade que lhe conferia a sua identidade única e maravilhosa. Foi até onde podia ir e depois, sem transição, sem dor ou espanto, sentiu-se como que virado do avesso e já não era nada, tinha deixado de ser, mas apenas o que então fora, porque ainda era.
 
4.12.02
 
106.

Todos sabem que o pato é um animal completo, ao mesmo tempo aquático e gramático, características que lhe permitem viver na água e exprimir-se com toda a elegância e desenvoltura. Mas nem sempre foi assim, durante muito tempo os patos tinham um medo horrível da água, e da gramática então nem se fala. Não se sabe ao certo o que aconteceu, mas existem várias histórias sobre o assunto. Infelizmente desconheço-as todas e sou completamente incapaz de inventar seja o que for. Faz muito tempo que só avisto aquela ave rara à refeição, quando é ao mesmo tempo prática e aromática.

105.

A pequena barata voadora gostava muito de ouvir as histórias que a avó barata lhe contava quando regressava a casa, a meio da noite, a cair de bêbeda. Havia sempre baratas fortes e corajosas e muitos, muitos homens esborrachados. Eram histórias maravilhosas que a enchiam de uma enorme satisfação e orgulho. Dormia sempre muito melhor e tinha sonhos radioactivos em que as baratas governavam o planeta. É sabido que as histórias favorecem o desenvolvimento da personalidade e fortalecem a moral. Foi o que aconteceu com a pequena barata: cresceu e tornou-se uma barata responsável que nunca se mete em confusões.

104.

“No tempo em que os animais falavam com os homens como era o mundo?”, perguntou a jovem raposa à sua mãe. “Os animais sempre falaram, mas os homens nunca os escutaram verdadeiramente”, disse a mãe, “a não ser alguns, muito poucos, e sempre cada vez menos. E tanto que tínhamos para lhes ensinar!”. A raposa era um mamífero carnívoro, da família dos canídeos, muito ágil, esperta e manhosa, de pêlo forte e longo, focinho pontiagudo e cauda comprida, que se alimentava de aves e pequenos mamíferos; pode ainda ser encontrada nas antigas histórias, em especial nas de proveito e exemplo.
 
2.12.02
 
103.

Palavra a palavra a história foi tomando forma. Primeiro a introdução, depois o desenvolvimento, frase a frase, parágrafo a parágrafo, a história estendia-se preguiçosamente e parecia interminável. O escritor não se apressava, retirando o maior prazer do acto de escrever, mas sabia que estava cada vez mais perto do fim. Foi adiando o mais que lhe foi possível esse momento, mas o desejo de completar a história acabou por vencê-lo, e chegou finalmente à última página, à última palavra antes da palavra fim. Inconformado, substituiu-a, num protesto ingénuo, pela expressão “a continuar”, e completou para si mesmo “na próxima história”.
 



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